“O olhar encantado do Guel”, uma crônica sobre amor, brincadeira e a pessoa mais sortuda do mundo

Canto Cidadão
13 julho 2021

Conteúdo produzido por Raniele Souza, voluntária do Time de Reportagem do Canto Cidadão

Os dias andam, em passos largos. O ponteiro está cada vez mais acelerado. Há uma ansiedade no tempo. O estresse e a rotina têm deixado meus ombros cada vez mais tensos. Um clima de esgotamento e insatisfação paira no ar. Mãos sobre os olhos, cotovelos apoiados na mesa e um olhar insatisfeito fita a pilha de afazeres. É, assim, cinco dias por semana. Feito um homem de lata que sente a consequência de ter sua essência reprimida e a sua vida programada.

As minhas pálpebras estão sempre cansadas e os meus olhos fitam a tela do celular, enquanto mais uma estação fica para trás. Nos meus dias estressantes, não consigo enxergar os detalhes da vida, nem a beleza sutil de tudo que me cerca. Para a minha sorte, essa nuvem cinza só fica na minha cabeça durante o horário comercial, porque no exato momento que giro a chave do portão de casa, o olhar encantado do Guel me convida para entrar na sua ludicidade.

Não dá tempo de tirar os sapatos, pois o Guel está tão empolgado com o primeiro desafio da noite que solta sem direito um spoiler da missão da vez: caçar o lobo mau que se esconde na parte escura da nossa casa. No caminho, passamos por montanhas e precipícios que escondem jacarés selvagens,  com dentes enormes prontos para abocanhar quem invade seu espaço. Da última vez, um deles quase arrancou a minha perna, mas o Guel me salvou usando o poder superior. Ele é infalível, um verdadeiro trunfo na manga.

O Guel também costuma transformar corredores de supermercados em pista de atletismo. Sem titubear e com confiança no olhar, me desafia a mais uma corrida. Ele é um exímio atleta; quando tira os chinelos e aciona o modo turbo, é quase impossível alcançá-lo. Porém, com muito esforço, eu o alcanço e o agarro. A gente cai no chão, gargalha e antes de recuperar o fôlego, ele diz: “vamos de novo?”.

No mundo do Guel, as nuvens são algodão doce gigantes, as pedrinhas são rochas enormes que impedem nossas missões, o lado escuro da casa, um lugar mal-assombrado e o moletom embaixo da cama, rapidamente se transforma num monstro, com olhos vermelhos, pele pegajosa e bafo de comida estragada. Sempre que o Guel descreve o que vê, sinto vontade de me mudar para a utopia dele e ficar bem longe de tudo que me rouba a fantasia, mas, como não posso, aproveito o tempo que temos para pintar o que nos rodeia do jeito que quisermos.           

Aproveito ao máximo a habilidade que ele tem de dialogar diretamente com a minha criança interna. Quando estou com ele, ela toma a frente, brinca, sorri, faz peraltice sem se importar com o meio, o tempo e os outros. Ele a chama e ela vem. A gente se diverte até o cansaço bater. Normalmente, ele nocauteia o Guel primeiro – ele desaba no meu peito – e, naquele momento, sentindo a respiração dele rente ao meu rosto, a mãozinha dele acariciando a minha orelha, me convenço que sou a pessoa mais sortuda do mundo.