Palhaçaria, uma arte que fala sobre coragem: um papo com Ana Wuo

Canto Cidadão
25 maio 2021

Papo com Ana Wuo, uma das maiores especialistas do Brasil, sobre a palhaçaria, arte divertida e necessária, que nos traz diversos ensinamentos.

Texto de Jaqueline Belo, voluntária do Time de Reportagem do Canto Cidadão.


Simpáticos e divertidos, os palhaços nos fazem dar gargalhadas com seu jeito atrapalhado. Com cenas que ocorrem de fato em nosso dia a dia, eles nos mostram a realidade que cada pessoa conhece em secreto: o lado de dentro do ser humano.

Afinal, quem nunca se identificou com alguma trapalhada feita por eles? Como, por exemplo, uma tentativa frustrante de matar um pernilongo que perturba nossos ouvidos, ou, até mesmo, escorregões que levamos do nada e nos causam vergonha. Os palhaços estão presentes na história da humanidade e mais do que sorrisos eles trazem muitas reflexões, pois ensinam que rir de suas próprias falhas é um caminho leve e feliz.

‘’A fraqueza do palhaço é a sua força, então ele mostra para o ser humano que é isso, você sendo frágil, errando, você também é um ser de força’’

É isso que nos conta Ana Wuo, professora da Universidade Federal de Uberlândia, atriz e palhaça, quando questionada sobre a importância do palhaço para a sociedade. ‘’O palhaço é uma filosofia de vida, ele não ensina a gente a só rir, não, ele ensina a gente a refletir que somos seres frágeis que temos as nossas dificuldades. O palhaço mostra isso nas suas cenas, ou seja, o quanto o erro é necessário. Então, a maior importância que eu vejo é essa: o palhaço mostra que é possível errar e desformar todas as possibilidades de fragilidades. A fraqueza do palhaço é a sua força, então ele mostra ao ser humano que é isso, que você sendo frágil, errando, você também é um ser de força.’’

Falando de história, é quase unânime a ligação que a sociedade tem do palhaço com o circo, mas apesar de suas histórias realmente se cruzarem, em determinado momento, o palhaço nasceu de forma totalmente independente.

Pré-circo Corcundas, muitas vezes, anões e com alguma deficiência física, os bufões ou bobos da corte como a maioria conhece, são pioneiros na trajetória da construção do palhaço. Essas figuras surgiram há séculos, em sociedades medievais, e depois de algum tempo passaram a serem ”aceitos” e até pagos para entreter o rei e dar valiosos conselhos a ele. Os bobos da corte faziam o que todos tinham medo: falavam o que pensavam sobre o rei e até apontavam erros em seu reinado. Eram homens sábios e possuíam diversas funções e habilidades, como o malabarismo.

Imagem: Pixabay

O palhaço pode ter sofrido inúmeras transformações, mas o fato de serem sábios, possuírem diversas funções e, na maioria das vezes, serem vistos de uma maneira distorcida e abaixo do que realmente são, permanece. Ana Wuo enfatiza que isso se deve ao fato de as pessoas não conhecerem a fundo essa arte: “Elas (as pessoas) não conhecem essa arte com profundidade, não estudaram sobre o tema. Palhaço é um estudo para a vida inteira, é um estudo humano, uma filosofia de vida. Então, as pessoas que distorcem e colocam o palhaço às vezes na política, no meio político, estão totalmente o distorcendo, totalmente sem conhecimento.

Apesar de na época os bobos da corte serem ridicularizado e esnobado por muitos, eles eram libertos de qualquer tipo de vergonha, pois não hesitavam em mostrar seus defeitos e usar isso a seu favor, fazendo muita graça e sendo extremamente ousado para época.

‘’Palhaço é uma arte que nos revela o quão inteligente é o bobo. A gente só consegue fazer bobices e trabalhar em cima da possibilidade do erro quando a gente tem uma inteligência muito ativa’’

O palhaço usa de sua criatividade e liberdade para nos mostrar que não há nada de errado em rir de si mesmo, pois todos somos feitos de erros e acertos. “Palhaço é uma arte que nos revela o quão inteligente é o bobo. A gente só consegue fazer bobices e trabalhar em cima da possibilidade do erro quando a gente tem uma inteligência muito ativa. Creio que o palhaço trabalha nesse eixo criativo e ativo, nesse jogo das polaridades do certo e errado e traz uma visão de que nós somos todos seres que erram e consertam seus erros e, acima de tudo, ri de si mesmo.O palhaço mostra ao mundo que não precisa ser sério. Se não fosse toda essa seriedade do mundo, não existiriam as guerras, essas concorrências políticas, todo esse eixo de política sem noção, o ser humano seria muito mais vitorioso. Os palhaços mostram que é possível ganhar guerras sorrindo’’, diz Ana.

Palhaçaria de circo

Assim como os palhaços, o circo é antigo e foi se aperfeiçoando com o passar dos anos. É difícil apontar com precisão como foi seu surgimento, pois a história nos mostra diversos lugares em que ele surgia e em cada canto ele tinha suas particularidades.

Imagem: Pixabay

O que sabemos é que na antiguidade o circo era muito popular, tendo um grande público, pois naquela época as pessoas não tinham rádio, televisão ou outras formas de entretenimento, que hoje conhecemos.

Sem o vínculo do palhaço com o circo, o que predominava eram as acrobacias e até mesmo confrontos ferozes, entre pessoas e animais. Foi somente no século 18 que Philip Astley, oficial inglês da cavalaria britânica, trouxe diversas atrações de rua – como o palhaço – ao circo, construindo uma arena com arquibancada para realizar essas apresentações, o que gerou um ótimo retorno. Até hoje, Philip Astley é considerado o “pai do circo”, devido a todas as transformações que ele realizou.

E, foi pela entrada do palhaço no circo, que ele foi finalmente respeitado. Esse artista, que sofreu tantos ataques e zombarias, passou a ser visto com olhar de admiração e aplaudido por diversas pessoas.

Palhaçaria contemporânea

A palhaçaria que conhecemos, atualmente, é o reflexo do que vimos até aqui e muito mais. Sendo herdeiro do bufão – ou bobo da corte, como preferir – o palhaço ainda possui muitas características desse tempo, entretanto foi modificado em vários outros pontos, como, por exemplo, o fato da inserção das mulheres nessa arte, como pontua Ana: ‘’O papel do palhaço foi se transformando no papel da palhaça (risos), porque eram só palhaços que atuavam e, aí, as palhaças começaram a atuar por volta de 1990 com ‘As Marias da Graça’ e isso foi dando uma outra concepção para a linha da palhaçaria, que é o gênero feminino. Então, mudou muito, mudou a forma como as mulheres vão entrando nos papeis que eram feitos só por homens, tanto nos circos, teatros ou hospitais. Acho um fato importante à inserção do gênero feminino nessa técnica. ‘’ Na contemporaneidade, o palhaço conversa com diversas faixas etárias e classes sociais, ao contrário da antiguidade ele não aconselha somente a nobreza, mas, sim, a todos que estiverem dispostos a ouvi-lo.


Confira agora o restante da entrevista com a Ana Wuo

Ana Wuo, no espetáculo “Dormente”. Imagem do Instagram @anawuo

TR: Antes de tudo, quero te agradecer por topar responder essas perguntas. É uma alegria e um enorme prazer para nós do Canto ter você como entrevistada. Conta para a gente o que te levou a fazer palhaçaria? O porquê dessa escolha?

AW: O que me levou a fazer palhaço nessa jornada foi a academia, a universidade. Quando eu fazia artes cênicas na Unicamp, eu encontrei um trabalho que foi realizado pelo professor Luiz Otavio e, aí, quando eu vi esse trabalho dele, os palhaços e clowns andando pelo departamento de arte cênicas, isso me provocou uma profunda curiosidade de querer fazer cursos de palhaços e, então, eu fui procurar o Lume, daqui de Campinas-SP, para fazer esse retiro de palhaços. Eu comecei em 1992 a fazer esse trabalho de palhaço, então o que me levou a fazer palhaçaria foi o encanto pelo palhaço e pela lógica que o palhaço tem da gente pode ser ridículo, patético e inadequado. A palhaçaria foi um meio de superar várias fragilidades minhas, fraquezas e etc.

TR: Para ser um bom palhaço, o que você acredita ser fundamental?

AW: Para ser um bom palhaço, uma boa palhaça, é necessário você ter um trabalho técnico de atuação com a máscara, saber que essa máscara tem uma potência quando ela é bem trabalhada, ela tem uma boa racionalidade técnica, então você sabe que esse nariz é o olho do palhaço e quando você consegue que essa técnica se transforme em uma atuação muito simples, muito efetiva para realizar esse diálogo, essa interlocução com a plateia. Então, a coisa mais fundamental é a atuação com a plateia, essa escuta do olhar da plateia para que você tenha uma boa atuação e para que o jogo do palhaço se estabeleça.

TR: Qual a sensação de ter a responsabilidade de levar diversão e também amor às pessoas? Você sente medo de falhar?

AW: É realmente uma responsabilidade muito grande, sinto medo e tenho medo de falhar, mas por isso eu estudo muito, procuro estudar muito a mascara do palhaço, fazer muitos cursos, para que essa interlocução com as pessoas não falhe. Medo de falhar a gente tem, mas a forma de combater esse medo é buscando capacitação, fazendo cursos e isso vai te dando uma maior segurança. Palhaço precisa de formação, estar sempre se atualizando.

TR: O palhaço é uma arte milenar. Em sua opinião, o que o faz permanecer vivo, durante tantos anos?

AW: Eu acho que o palhaço tem essa atuação milenar porque ele é necessário para a humanidade. A humanidade precisa rir, transgredir, e o palhaço é a significação da situação humana. Ele mostra situações extremamente humanas, mostrando como se transgride, mostrando as fraquezas e fragilidades. Então, o ser humano precisa rir de si mesmo e eu acho que por isso ele esta vivo, há tanto tempo, e ele vai se transformando. Não existe só um palhaço, mas existem palhaços e palhaças. Acho que é uma multiplicidade, uma arte milenar que se multiplica com o decorrer dos anos, com a necessidade que a humanidade tem dessa figura transgressora, que nos traz uma potencia de alegria.

TR: Os palhaços, assim como crianças, são sinceros. Então, como palhaça, qual o recado que tem a dizer ao mundo? O que pensa sobre o atual momento que estamos vivendo?

AW: A minha palhaça diria assim ‘’deixem os palhaços entrar na sua vida’’ (risos). É isso: deixem os palhaços e as palhaças entrarem.


Ana Wuo é Professora Adjunta do Instituto de Artes da Universidade Federal de Uberlândia (2014) – Doutorado em Artes da Cena, programa de pós-graduação -Instituto de Artes da UNICAMP( 2013) formação: Graduada em Artes Cênicas pelo Departamento de Artes Cênicas-Instituto de Artes pela Universidade Estadual de Campinas (1993), pesquisadora em técnicas de ator -LUME – UNICAMP (1994-1998), possui mestrado em Estudos do Lazer em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (1999) e doutorado em Pedagogia do Movimento-Corporeidade em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (2005). Pós-doutorado em Linguística no IEL – Instituto de Estudos da Linguagem – UNICAMP (2008- 2011). Tem experiência docente na área de Artes Cênicas com ênfase na formação do ator e em Educação com ênfase em Arte-educação -sócio- cultural na formação do pedagogo, desenvolve projetos de extensão com intermediação á linguagem, aprendizagem de conteúdos e metodologias de artes na rede privada e pública. Ministra cursos para formação do professor artista: jogos e improvisação, técnicas teatrais, técnicas corpóreo expressivas, jogo teatral na formação do pedagogo, dramacontação (narrativa, dramatização por meio de contação de histórias), Congada (cultura popular). Na área de Teatro, atua principalmente nos seguintes temas: clown, mimeses corpórea, espetáculo teatral, direção teatral, técnica de treinamento, processo criativo e elaboração de repertório do ator e demais vivencias artísticas no Brasil e exterior. Referência em pesquisa de comicidade e atuação de palhaços no contexto acadêmico e hospitalar no Brasil e exterior.