Pra onde vão as bolhinhas de sabão?

Canto Cidadão
6 agosto 2019

Podcast (conteúdo em áudio) de Felipe Mello, gravado a partir de um texto escrito por ele.

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Além de poder ouvir e baixar o áudio, acima, você também pode ler o texto original, abaixo.

Ilustração de Luciano Tasso

Pra onde vão as bolhinhas de sabão?

Filosofar é sempre bem-vindo. Quando o cenário é uma praia e a companhia é uma criança, a fórmula fica ainda melhor. Eu e meus trinta anos, minha filha e seus sete.

Depois de comer um milho verde, eu na espiga e ela no prato – o que lhe causou certo constrangimento pela evidente falta que alguns dentes da frente fazem –, caminhávamos pela praia, desafiando São Pedro e sua mania de fazer chover aos domingos.

– Papai, faz bolhinha de sabão para eu pegar?

Sacando o pequeno frasco de meu bolso, atendi ao singelo pedido. Ventava, o que tornava o desafio ainda maior. Cada rajada de bolhinhas saía sem rumo, espalhando-se fartamente. Mesmo assim, ela corria, corria e corria ainda mais. O sorriso em seu rosto a fazia saltar bem alto, trombando com as bolhinhas de forma entusiasmada.

– Pra onde vão as bolhinhas de sabão, papai?

Uma pergunta despretensiosa, palavras sopradas em meio a um sorriso tão banguela que dava vontade de sorrir junto, da alma para o mundo.

– Pra onde vão as bolhinhas de sabão, papai? – A pergunta sobreviveu ao meu descaso inicial, ganhando ares pretensiosos por meio de uma tremenda figura de linguagem, metáfora inocente daquelas que mexem com a gente. Minha filha queria uma resposta urgentemente.

– Como as bolhinhas de sabão voam? – perguntei, querendo ganhar tempo, imaginando que ela hesitaria por alguns instantes.

– Papai, elas voam com suas incríveis asas invisíveis! – respondeu prontamente.

Touché. As bolhinhas de sabão tinham asas. É lógico. Se voavam, era porque algum tipo de asa tinham. Mas se eram invisíveis, como poderia enxergá-las? Ao me perguntar isso, inicialmente cheio de razão, caiu à minha frente um espelho mágico.

– Pra onde vão as bolinhas de sabão? – perguntou-me a imagem refletida.

– Até você? – reagi, de forma firme. – Eu querendo entender a questão das incríveis asas invisíveis e vem você me criticar.

– Não é crítica. É boia de resgate. Agarre-se ou afunde ainda mais. – disparou o espelho.

Decidi me entregar à oferta. Afinal, qualquer ajuda era bem-vinda naquele momento. Minha filha continuava esperando a minha resposta.

– Papai, pra onde vão as bolhinhas de sabão? – ela repetiu, quase sem paciência.

O tempo havia se esgotado e eu não tinha uma resposta. Eu também queria saber, uma vez que a pergunta fazia cada vez mais sentido. Estava evidente que faltava matéria-prima em minha caixa de brinquedos para responder.

– Filha, você pode me dizer para onde vão as bolhinhas de sabão?

Se ela respondesse à pergunta sem pestanejar, acreditando na sua resposta, eu mergulharia naquela água fria.

– Papai, as bolhinhas de sabão vão para onde elas quiserem.

Só não mergulhei porque estava com muito frio, daqueles que vêm de dentro, muito de dentro. A chuva apertou. Coloquei minha filha no colo, abri o guarda-chuva da filosofia e caminhei de volta para casa.

Este episódio ficou em minha cabeça por alguns meses. A metáfora da bolhinha de sabão e o mundo que a criança constrói através dela me fascinaram. Aventuras, expectativas, sorrisos e encontros criados naquela singela brincadeira. Imaginação é mais importante que conhecimento, já dizia Einstein.

Resolvi colocar isso no papel em forma de história infantil. O que acontece quando tiram da criança a possibilidade de fazer bolhinhas de sabão, ou seja, de voarem para onde elas quiserem? Acontece o que estamos presenciando em larga escala em nosso país, com direitos essenciais ainda ausentes para tantos.

Como resgatar a fórmula das bolhinhas de sabão, levada pelos abutres malvados? Aliando-se à educação, alimentação saudável e natureza. A partir deste enredo, a história foi escrita. Fiquei feliz com o resultado. A felicidade, entretanto, durou pouco. O incômodo voltou. Decidi contar a história para mais gente. Transformei-a em uma peça de teatro e pesquisei as formas de tornar sua produção viável. Conheci o Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo, por meio do qual empresas podem destinar parte do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) devido a projetos culturais. Esperança para o meu desejo de levar a peça para milhares de crianças, gratuitamente.

Era a primeira vez que eu trabalhava com projetos desta natureza. Sempre ouvia dizer que somente os bem relacionados conseguiam patrocínio. Após muita persistência e trabalho, veio a surpresa: o projeto foi aprovado e uma indústria alimentícia decidiu patrociná-lo. Em 2008, a peça “Pra onde vão as bolhinhas de sabão?” foi vista inteiramente de graça por 15 mil crianças e outras centenas de professores e convidados de escolas públicas de São Paulo-SP e de outras quatro cidades do interior paulista. Cada espectador recebeu um livro, muitos deles pela primeira vez na vida, levando para casa a história e as possibilidades das bolhinhas. Em 2013, em uma nova temporada absolutamente gratuita, dessa vez por meio da Lei Rouanet, que permite às empresas destinarem parte do Imposto de Renda devido a projetos culturais, a peça será vista por aproximadamente 10 mil crianças de escolas públicas e organizações sociais.

Os conceitos e as palavras têm um poder incrível. Nascem no plano das ideias e emoções e se espalham com a capacidade de sensibilizar, provocar, ilustrar e convidar para a ação, tornando-se embriões das transformações.

Esta experiência com a minha filha e com os filhos de milhares de pessoas me ensinou o sentido real da palavra ética. Ela vem do grego arcaico ethos e, depois, do latim domus, significando em português a morada do humano, ou ainda, a nossa casa, nossos valores essenciais. A conversa com a minha filha, realizada no contexto familiar, na “minha casa”, expandiu e voou como bolhinhas de sabão para tantas outras casas. Acreditei em Rui Barbosa, que dizia que a “pátria é a extensão da família”. Acreditei também nas últimas palavras da história que escrevi: “certamente muitos desafios ainda existem, e a melhor solução é sempre fazer muitas bolhinhas de sabão. Enquanto elas nascerem do sopro sincero de vida das crianças – pequenas e grandes – com a liberdade de seguirem seus destinos, indo aonde quiserem, a alegria e a fantasia existirão”.