A chuva fez amor comigo. Ela, Erastis. Eu, Eromenos


7 janeiro 2011

Hoje a chuva fez amor comigo. Eu aceitei, com umas das passividades mais protagonistas que já vivi.

Antes do ato em si, as preliminares. No parque, rede em meio às ninfas que moram nas árvores. A cada gole de vinho, herdado de uma visita de poucas taças, Dionisio dava um passo em minha direção. Não vinha só, mãos enlaçadas que trazia com Eros e sua aljava de mil flechas.

O embalo ganhava ainda mais divindade pela trilha sonora, capitaneada por Baden Powell e João Donato. Cada nota comungava com o movimento do vento e da paisagem enxergada, misturada por folhas verdes, pessoas em movimento, sentimentos.

Fim de garrafa. Longe do fim do poço.

A boca miúda recomenda ingerir porções da nobre água entre os goles do profano vinho. A razão eu não sei ao certo, mas certamente os médicos e os sabidos podem explicar. Talvez exista alguma herança mítica dos tempos em que Jesus providenciou a mudança de uma para outro, por solicitação de sua mãe, no episódio do primeiro milagre cristão. Que bom que o menino era obediente.

Eu, de minha parte, se não misturei os líquidos durante, resolvi fazê-lo no depois. Em vez de água engarrafada, triste porque não faz mais redemoinho, água chovendo, chegando de mansinho.

Como em outros dias deste verão, tal qual dias outros de outros verões, passos largos em mais uma corrida molhada. A mansidão inicial da chuva se converteu em um senhor banho turco. Como curto, segui no splash-sploft do tênis nas poças que engordavam a cada instante.

À razão chegou a preocupação com a integridade do aparelho tocador de música. Água não combina com ele. Fórmulas diferentes: ela, H20; ele, MP3. O jeito foi tomar uma decisão. Preferi arriscar o estado de conservação do equipamento, motivado pelo veredicto quase unânime entre as minhas partes juízas: se necessário, uma outra coisa poderia ser comprada a prazo na loja; todavia, aquela sensação só poderia ser adquirida à vista, ao tato, ao paladar, ao olfato e à intuição, ali, no momento vivente.

No caminho, muitos colegas iam parando, refugiando-se em espaços cobertos. Eu insistia em não me cobrir. Queria descobrir cada vez mais.

Veio, então, o ápice do encontro.

Depois da exaustão física, o momento de alongamento. Deitei-me, ainda em processo de descobrimento, de cara para a chuva, que chovia em seu nível mais intenso. Respiração ajustada, músculos equilibrados, comecei a sentir beijos. Um, doze, cento e quarenta, treze mil e quatrocentos, centenas de milhares, incontáveis.

A chuva me beijava despudoradamente.

Eu estava naquela posição de índio, com as pernas cruzadas e as costas encostadas no chão. Espontaneamente, soltei as pernas e me recostei totalmente, entregue àquela orgia improvável e deliciosa. A chuva estava me conduzindo, com uma ousadia carinhosa, intensa e delicada.

Entreguei-me, absolutamente.

Tornei-me Eromenos, jovem e inexperiente amante da Antiguidade; a chuva, Erastis, amado que colocava o seu vigor erótico a serviço da fundação de novos mundos pela revelação de seres.

Como a chuva é mal compreendida, recriminada e maltratada em nossos dias, especialmente nas grandes cidades, monstros disformes e descabidos. Ela se tornou uma espécie de vilã contemporânea, como alguém que tivesse chegado à festa sem ser convidado.

A chuva sempre choveu, desde a noite dos tempos.

Ela atrapalha o trânsito? Não, é o trânsito que atrapalha a exuberância da chuva no final da tarde, insistindo em brincar com o lusco-fusco mesmo em meio às partículas poluídas. Creio que parte da chuva nas cidades enclausuradas é choro. Ela chora, tal qual dama incompreendida, cheia de amor e paisagem abandonados por olhos em constante estiagem.

O aparelho eletrônico tocador de músicas resistiu à intempérie. Mais do que isso, ele foi um discreto mecenas da obra de arte íntima que acabara de ser concebida. Em vez de notas monetárias, notas musicais que vieram em uma sequência sublime.

Nunca a função “Ouvir aleatoriamente” do equipamento havia funcionado de forma tão magistral.

Despedi-me da chuva com um sorriso no canto dos lábios, daqueles que denunciam um ato ou pensamento cheio de segredos prazerosos.

Corri, não mais como exercício físico, mas em direção ao bloco de notas, transformado naquele instante em um diário juvenil. Mãos trêmulas, molhadas e desejosas de registrar para contar a quem quisesse saber que o autor havia sido seduzido, beijado e tocado. Vibrava com a possibilidade real de parir gotas generosas, fecundado que estava pela chuva.

Texto de Felipe Mello
felipe@cantocidadao.org.br

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