A cumplicidade transformada em cidadania


15 fevereiro 2004

Através de canais de denúncia, a Abrapia recebe e trabalha com milhares de casos de crianças e adolescentes vítimas de vários tipos de violência.

A cada minuto uma criança é vítima de violência doméstica no Brasil. Absurdamente chocante e inacreditável, não fosse um retrato verdadeiro da realidade brasileira. Sendo assim, mais do que somente blasfemar contra os culpados diretos ou a omissão social, urge empreender ações assertivas. E quando se fala em agir, não é possível alcançar uma solução duradoura sem a vigilância e a participação coletiva. Ou seja, a banalização das agressões deve ser interrompida, banindo do senso comum a normalidade com que estes assuntos são encarados nos dias hodiernos. Reflexo do desequilíbrio social, fortes abalos emocionais frente os desafios da dura vida, arroubos de violência etc. Quaisquer que sejam as razões que ousem explicar a violência contra crianças e adolescentes, elas certamente perdem força frente aos problemas que podem ser gerados em decorrência destes atos.

Fonte de informações

A mesma fonte que gerou a informação do início do texto também traz outras considerações igualmente preocupantes como, por exemplo, descobrir que 93,5% das agressões domésticas contra a criança brasileira são feitas por parentes próximos. Seria muito mas confortável não ter de divulgar dados como esse. Mas como são reais, é preciso valorizar e incentivar a pesquisa neste sentido. É o que faz a Abrapia, a Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência. Criada em 1988, esta organização não-governamental assumiu como missão a conscientização da sociedade para os riscos sociais e pessoais e, sobretudo, a devolução da auto-estima das crianças e adolescentes vitimizados e explorados. A organização vem travando fortes batalhas para continuar sendo referência no assunto, encarando obstáculos como as mudanças  governamentais e, por conseqüência, mudanças nas regras do jogo.

O início da trajetória

Há aproximadamente 15 anos, na pediatria do Hospital Municipal Souza Aguiar, no Rio de Janeiro, um bebê de 3 meses estava se tratando de uma fratura no fêmur esquerdo. Até aí o caso poderia ser fruto do excesso de energia dos pequenos, somado ao descuido de pais muitas vezes despreparados e desatentos. No entanto, três meses depois essa mesma criança voltou ao hospital, trazendo consigo uma fratura no fêmur direito. Fatalidade e coincidência? Não. Apresentava-se ali uma vítima de agressão física. Assim como este caso, muitos outros faziam parte do cenário daquela instituição de saúde, o que motivou o Chefe do Serviço de Pediatria, Dr. Lauro Monteiro, a idealizar e constituir uma equipe de profissionais na área de Saúde, Educação, Direito e Serviço Social. “Nossa proposta foi criar  um centro de referência no desenvolvimento de ações e pesquisas voltadas para a defesa de crianças e adolescentes vítimas de violência intrafamiliar”, afirma Dr. Lauro Monteiro, ainda dirigente da organização. Assim foi fundada a Abrapia, uma entidade privada com objetivos públicos, reconhecida como de utilidade pública em nível federal, estadual e municipal.

Definição de diretrizes
 “As diretrizes da Abrapia estão voltadas para o desenvolvimento de programas que viabilizem condições favoráveis para o desenvolvimento infanto-juvenil, a realização de estudos e pesquisas relacionados ao desenvolvimento de crianças e adolescentes, além do trabalho pela promoção da cidadania infanto-juvenil, a valorização da família e a mobilização da sociedade”, destaca Dr. Lauro. Uma teia de ações interligadas para colaborar de forma efetiva para a redução de todos os tipos de violências intrafamiliar contra crianças e adolescentes. Vale ressaltar que, apesar destas vítimas sofrerem dentro de casa, ou seja, dentro de sua unidade familiar, o assunto deixa de ser somente de interesse particular, mas passa a ser público.

Entendendo a violência contra crianças e adolescentes

O cidadão é peça fundamental para a engrenagem da justiça funcionar. Sendo assim, é preciso que haja um entendimento sobre a violência. A Abrapia se esforça para explicar os tipos de agressões, sendo as mais freqüentes a física, psicológica, negligência e a sexual. São murros, tapas, queimaduras, rejeições, discriminações, preconceitos, omissões, estupros, entre tantas outras formas que boicotam o futuro de tantos e agrava o desequilíbrio social. O esforço em pesquisar e divulgar o retrato de uma infância que sofre cumpre um papel de mobilizar atenções, convocando a sociedade a entender e tomar atitudes frente aos desafios. E para fomentar a participação social, a organização criou alguns canais de participação ativa. É o conceito de tirar a pessoa da condição de cúmplice e passá-la para a condição de cidadão.

Resultados e desafios para manter os canais abertos
Dentre os programas já desenvolvidos pela Abrapia, um deles simboliza o objetivo da organização, assim como o desafio atual de muitos integrantes do terceiro setor. É o SOS-Criança, criado em dezembro de 1988 com o objetivo de receber denúncias de todo o estado do Rio de Janeiro sobre violência doméstica contra crianças e adolescentes, de ordem física, psicológica, sexual e negligência. Buscando democratizar a forma de denunciar, as comunicações eram feitas pessoalmente, por telefone, carta, FAX, e-mail ou através internet. Dr. Lauro Monteiro explica que “a partir da denúncia, o caso tinha um acompanhamento de uma equipe multiprofissional, com assistentes sociais, psicólogos e advogados. Este time trabalhava com a conscientização e reintegração do núcleo familiar com as crianças, adolescentes e suas famílias, utilizando entrevistas e inclusive visitas domiciliares”.

Entretanto, mesmo com a argumentação de utilidade evidenciada, o caro leitor deve ter percebido que o parágrafo anterior foi escrito com o tempo verbal no passado. Isto porque há quatro anos, aproximadamente, o Governo Estadual, parceiro oficial do SOS-Criança, interrompeu o repasse de recursos, minando a força do trabalho. A justificativa era a criação de uma central própria de denúncia. Mas, segundo Dr. Lauro Monteiro, este serviço ainda não foi colocado em funcionamento. Dentro desta linha de parcerias intersetoriais que são interrompidas, sendo a população a maior prejudicada, a Abrapia ainda tem outro caso para contar. “No início de 2003, o Governo Federal interrompeu o repasse de verbas para o Disque-denúncia nacional que mantínhamos, programa que atuou durante seis anos e que, no intervalo de um ano e meio, por exemplo, recebia e trabalhava com mais de 1100 denúncias”, informa Dr. Lauro. Assim como o outro programa, a explicação é que um serviço do governo entraria em ação, o que também ainda não aconteceu. Mas como ainda recebe muitas denúncias, atualmente a Abrapia as envia para a Secretaria de Direitos Humanos do Gabinete da Presidência da República. Além disso, quando o assunto é diagnosticar a existência ou não de violência contra crianças e adolescentes, a organização ainda recebe muitas consultas dos conselhos tutelares. Fica nítida a decepção da direção da organização com a instabilidade ainda existente em algumas parcerias firmadas com o primeiro setor.

Outros programas da Abrapia

Uma outra vertente do trabalho é a democratização do conhecimento gerado. Tanto assim que o Setor de Documentação é referência nacional para consulta de estudantes, universitários e profissionais de diversas áreas que lidam com a criança e o adolescente. Atualmente, o acervo do setor é de 830 publicações, além de periódicos (jornais e revistas), textos técnicos e fitas de vídeo. A organização também possui cartilhas e cartazes produzidos a respeito dos temas em questão. Um material produzido para ampliar o entendimento e o debate sobre as causas e possíveis soluções para os vários tipos de violências domésticas.

Somente assim, com a exposição maciça da verdade e o envolvimento de cada cidadão, será possível fazer o dever de casa, que está longe da violência, mas perto da atenção e educação. Isto tudo para que seja possível, oxalá em breve, não ter de concluir um texto dizendo que no intervalo de leitura deste, pelo menos oito crianças sofrerem algum tipo de violência doméstica.

ABRAPIA
www.abrapia.org.br

Rua Fonseca Teles, 121 – 2º andar
São Cristóvão – Rio de Janeiro – RJ
Brasil – Cep: 20.940-200
TEL: (5521) 2589-5656 FAX: (5521) 2580-8057


Mais informações:

FORMAS DE VIOLÊNCIA PRATICADA

Violência Física – 65%
Violência Psicológica – 51%
Negligência – 49%
Abuso Sexual – 13%

Parentes – 93,5%
Não Parentes – 6,5%

Parentes:

Mãe – 52%
Pai – 27%
Padrasto/Madrasta – 8%
Outros Parentes – 13%

Não Parentes:

Vizinhos – 3%
Babás e outros responsáveis – 2%
Responsáveis por instituições – 1,5%

Idade:

0 a 1 anos – 5%
1 a 3 anos – 17%
4 a 7 anos – 29%
8 a 11 anos – 24%
12 a 14 anos – 14%
15 a 17 anos – 12%

Sexo:

Masculino – 50%
Feminino – 50%

ABUSO SEXUAL

Vítima:

2 a 5 anos – 49%
6 a 10 anos – 33%
Sexo feminino – 80%

Agressor:

Sexo Masculino – 90%

Quantas crianças e adultos sofrem violência doméstica, no Brasil?

Nos EUA estima-se que cerca de 1% da população infanto-juvenil é maltratada todos os anos. No Brasil não há pesquisas nacionais. Por analogia com os índices norte-americanos, poderíamos dizer que, por ano, são vítimas das várias formas de violência doméstica, 600 mil crianças /adolescentes. Ou seja, 68 por hora ou 1 por minuto.

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