A esfinge e a paixão


15 outubro 2010

Para impressionar o leitor logo de bate-pronto, ampliando as chances de ter a sua companhia até o final do texto, recomendam os especialistas a inserção de uma afirmação categórica seguida de uma citação potente (obviamente feita por um personagem assaz respeitado). Sendo assim: a vida atual demonstra a cada dia que paixão e saúde são forças indissociáveis; já dizia Hipócrates, o “pai da medicina”, que “o homem que se afasta do seu destino adoece”.

Uma observação dos relatórios de remédios mais vendidos no Brasil confirma: muita gente opta por caminhar pela vida, por mais acelerada que ela parece ser, de forma anestesiada, apática. Nos citados documentos, o tranquilizante mais vendido em 1998 ocupou a sexta posição da lista; em 2008, um representante dessa categoria saltou para a segunda colocação, ultrapassando até mesmo comprimidos para dor de cabeça e pomadas para assaduras. Muita gente buscando alívio fabricado em laboratório. Voltando ao universo hipocrático, apatia significa “ausência de paixão” e, anestesia, “ausência de sentimento”.

Nova citação contundente: Hegel (filósofo alemão do século 18) diz que “nada de grandioso no mundo foi realizado sem paixão”; razoável imaginar que o excessivo consumo dos medicamentos citados leva o indivíduo a um efeito Tostines: “será que o consumo de tranquilizantes não me faz perceber a vida como algo grandioso ou por não perceber a grandiosidade da vida utilizo tranquilizantes?”.  O fato é que a ausência de paixão na vida e pela vida – e toda as suas vicissitudes – alimenta um círculo vicioso que diminui a potência humana criativa, afastando o indivíduo do seu destino a cumprir, adoecendo-o.

O início da adolescência de um jovem no momento esplendoroso da Grécia Antiga (há mais de 2.500 anos) era marcado por um ritual: nus, enrolados por uma guirlanda à estátua de Eros, declaravam nada fazer ou dizer ao longo de suas vidas que não fosse em nome da paixão. Essa cerimônia acontecia durante a Paideia, processo de educação grego que tinha como objetivo transformar o ser humano em uma obra de arte, ética e criadora, pela revelação e aprimoramento contínuo dos seus talentos. Um tempo depois, para se tornar cidadão, o indivíduo fazia um discurso em praça pública, respondendo quem ele era, de onde viera e para onde iria (enigma da Esfinge) e também como os seus talentos serviriam à coletividade. Tudo pela excelência pessoal, chamada por eles de “areté”, uma demonstração de respeito à vida, pela busca do melhor que se pode ser a partir do que se é.

Na Antiguidade ou nos tempos atuais, e provavelmente nos tempos futuros, a necessidade da resposta ao enigma da Esfinge lateja forte. É o papel dele. Afinal, “esfinge” vem de “esfix”, sufocar, angustiar. Quem não se dedica à resolução do enigma sente um aperto contínuo e crescente. Muitos buscam ludibriar a figura mitológica seduzindo-a com distrações químicas. Soa como procrastinação.

O mergulho no mistério individual, em busca dos talentos e do destino a cumprir, mesmo com todas as intempéries do caminho, ainda se apresenta como o mais verdadeiro – senão o único – combustível para a paixão e a realização do ser. Quem se afasta do seu destino adoece, perde o brilho nos olhos, pois um outro destino qualquer acaba arrastando-o pela vida.

Como último apelo em busca da aprovação do leitor, que venha Nietzsche (filósofo alemão do século 19): “quem tem pelo que viver aguenta qualquer como”. Os apaixonados sabem muito bem disso.

 

Texto de Felipe Mello

felipe@cantocidadao.org.br

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