A menina do quadro


14 maio 2012

Sinto uma fome sem fim. Toda a fome do mundo me diz respeito. Alface, tomate, cebola, alho, cenoura, arroz e carne. Um oásis à disposição de minha necessidade vital, que em breve estará saciada. Enquanto preparo o jantar, percebo pela visão periférica uma criança a me olhar. Ela vive, ou viveu, em Cabul, no Afeganistão. Seus olhos são do tamanho dos seus sonhos, ou ainda, das suas dores. Suas bochechas e queixo estão sujos, possivelmente por conta das horas trabalhadas em alguma terra abandonada pelos homens, entregue às mãos de algum deus descuidado. A menina que me mira mora dentro de um quadro, um pôster de um programa de combate à fome da ONU. Há algum tempo está colocada sobre um móvel no corredor entre a sala e a porta da cozinha, após me ser entregue em forma de presente das mãos de uma amiga. Enquanto preparo a comida, qualquer mínimo movimento de pescoço me faz perceber a presença daquela pequena alma. Encerrada em uma moldura negra, imóvel, absolutamente presente, me faz companhia. Um primeiro contato pode até causar susto, incômodo, angústia. Imagem difícil de olhar sem ser fisgado. Mas não a vejo sob a ótica da tristeza. Mais importante que me fazer sentir pena, essa amiga que nunca vi e nunca verei, faz fortalecer em mim o músculo da comoção, o desejo sincero de mover-me junto. Toda a fome do mundo me diz respeito. Sei que o vazio do estômago daquela pequena pessoa privada de direitos não é culpa minha, diretamente. Mas a culpa pelo vazio do estômago daquela pessoa privada de direitos passa a ser minha se relaxo e permito que a musculatura da comoção, ou empatia, se atrofie em mim. Se não posso servir parte da comida que comerei em instantes a ela, posso abraçar a sua dor, acolher o desafio de fazer o que estiver ao meu alcance para diminuir, pelo amor em ação, o pranto de quem não tem o mesmo prato e o canto cheiroso e confortável que a vida me entregou. Sinto uma fome sem fim. Que meu olhar me permita amiúde reconhecer, por estímulos externos, esse terreno fértil de solidariedade que ocupa a minha alma. Tenho a impressão que cada um dos homens e mulheres que caminham por este mundo levam consigo tal área de cultivo. Posso responder apenas pelas sementes que eu escolho plantar e regar, assim como pelos frutos delas advindos. Menina do quadro: perdão por não poder lhe entregar pessoalmente os frutos de minhas ações. Mas saiba que a sua presença me ajuda diariamente a arrancar as ervas daninhas da inércia e alienação. Um quinhão do pouco que planto de amor no mundo também é para você, ainda que degustado pela boca de outros.

<!– AddThis Button BEGIN –>

 

[removed]// <![CDATA[
var addthis_config = {"data_track_addressbar":true};
// ]]>[removed]
[removed][removed]
<!– AddThis Button END –>