Almoço feliz, noite feliz


15 dezembro 2003

Um epidódio marcante no Natal de 2004, deixando claro que a fome de pão é saciável mas a de beleza é insaciável

Aproximava-se das 13 horas. A tarde começava sob um calor intenso, mas prometia sair de cena com um temporal digno do verão paulistano. Nestas horas, fica difícil escolher entre o forno do calor ou o rio d’água. Mas esta não era a minha principal preocupação naquele momento. Definitivamente não era. Meu objetivo primário, quase obsessivo, era finalizar as compras de Natal. Por mais que eu tentasse me irritar profundamente, não conseguia ir muito longe. Afinal, fora eu quem atrasara a compra daquele item fundamental para o sucesso do evento natalino em uma casa com criança pequena: a fantasia do Papai Noel!

Por mais que seja dito que o bom velhinho anda desacreditado, e que as crianças de hoje em dia prefiram os desenhos animados japoneses, a dificuldade que eu encontrei me fez duvidar da queda do seu império. Foram necessárias horas de peregrinação por diversas lojas, localizadas em diversos quarteirões, para finalmente encontrar o que eu procurava. Mas como este não é o tema central do texto, tomo a liberdade de não tecer muitos comentários sobre dois fatos que fariam a minha pessoa ruborizar fortemente: o Papai Noel seria eu, e a única fantasia encontrada – e comprada com um ágio absurdo – era ao menos três números menores do que o meu, fazendo-me parecer um bailarino natalino. Pulemos esta parte. Afinal, o que não fazemos pelo sorriso pueril de nossas crianças?

Este episódio atrapalhado de compras na véspera do Natal poderia ficar só na comédia se eu não tivesse vivenciado uma experiência realmente marcante naquela tarde de 24 de dezembro. Permita-me voltar alguns instantes, ainda antes de encontrar a fantasia.

Enquanto procurava pelo item, passei por um restaurante muito diferente, que me chamou a atenção. Dezenas de pessoas estavam na fila, ansiosas por comprar o seu “ingresso”. Gente humilde, mas com um olhar especial. Imaginei que o espírito natalino estava fazendo efeito, amenizando o olhar tenso e disperso dos transeuntes. Quase segui meu passo, mas em um último olhar ao grupo da fila, percebi que não se tratava de um estabelecimento normal. Algumas pessoas, especialmente os moradores de rua, faziam-me duvidar que se tratava de um restaurante com “preços e práticas de mercado”.

Aproximei-me do local e então percebi que ali estava uma das unidades do Bom Prato, programa social do governo do estado de São Paulo, que oferece aos cidadãos refeições ao valor de R$ 1,00. Impossível não se emocionar nestes momentos. Mesmo que muitos definam este tipo de ação social como assistencialista, perceber a dignidade das pessoas na fila me fez dar uma atenção especial ao trabalho. Especialmente porque a grande maioria daquelas pessoas não teria sobre a sua mesa, na ceia de Natal, um peru de cinco quilos, tampouco comeria nozes ou panetone. Aquele prato subsidiado pelo governo, representante do povo é bom lembrar, compunha a sagrada refeição natalina daquela gente.

Senti uma grande vontade de entrar no restaurante e almoçar com aquela turma toda. Mas uma placa sobre o guichê de entrada me fez parar. Lá estava escrito o horário de início e fim do serviço, além do número máximo de refeições a serem servidas naquele dia – mil e quinhentas. Como restavam ainda trinta minutos para o encerramento dos trabalhos, não quis comprar a refeição, receoso de tirar de alguém a oportunidade de almoçar. Dei mais uma volta em busca da bendita fantasia e vinte minutos depois retornei ao Bom Prato. Dirigi-me ao guichê e perguntei quantas refeições ainda poderiam ser vendidas. A resposta me motivou a entrar, pois o tempo estava acabando e dificilmente o restaurante atingiria a sua lotação máxima nos últimos dez minutos.

A partir deste momento, vivenciei uma série de surpresas, as quais tiveram um sentido muito especial para mim naquele dia. A organização profissional e respeitosa no ato de servir, além da qualidade dos alimentos, reforçaram as minhas energias para o ano que começaria em uma semana. A refeição era composta por um prato de comida balanceado, além de um pão francês, um copo de suco e uma fruta. Nada de luxo, tudo de digno. Sentei-me junto a um grupo de moradores de rua, os quais imediatamente notaram a minha inusitada presença. Mas bastou uma única palavra de um jovem senhor de barbas longas para que eu pudesse me inserir na conversa. Foram alguns minutos de conversa franca, sem muitos rodeios, sobre as “coisas da vida”, como bem classificou o meu companheiro de rango. Pessoas obviamente maltratadas pelos sobressaltos de uma vida inimaginável para muitos de nós, varando madrugadas sob os viadutos e prédios abandonados. Mas ainda mais impressionante do que as peripécias que este pessoal faz para viver é a insistente crença de que dias melhores virão.

Elementos que reforçam a concordância com nosso presidente, no momento em que a fome é eleita como inimigo número um do desenvolvimento brasileiro. Além da óbvia necessidade fisiológica, a certeza de não passar fome muda a perspectiva de vida do cidadão, abrindo caminhos para escalar novos degraus.

Fica registrada, então, a positividade de ações como o Bom Prato. Regularmente adjetivada como assistencialista e populista, o que importa de verdade é que esta iniciativa vem fazendo a diferença na vida de dezenas de milhares de pessoas todos os dias.

Mais tarde naquela véspera de Natal, ao chegar vestido de Papai Noel em casa, realmente desejei ter o poder de viajar pelo mundo distribuindo o presente mais importante para o ser humano, a esperança. Que possamos viver um 2004 repleto deste sentimento que nos põe em movimento e nos mantém em pé, assim como vêm fazendo as refeições do Bom Prato.

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