As roupas que não me servem mais


15 dezembro 2009

Que tal deixar para trás as roupas que não servem mais e liberar espaço para a criação recreativa?

Algo comum entre os viventes é acordar e se vestir, especialmente para frequentar o espaço coletivo. Abertura de olhos, espreguiçamento, lavagem de rosto e dentes e visita ao armário. Pronto. Corpos vestidos, mentes nuas, recorrentemente nuas no tecido das ideias. A repetição é a atual palavra de ordem, na profissão, vida pessoal e sociedade. Mais do mesmo. Muito mais do mesmo. O ponto não é demonizar levianamente a rotina, que pode gerar momentos valiosos de serenidade, mas sim reconhecer a armadilha que conduz à perda da capacidade de criar, pela falta de recreação.

“Viver não é preciso, criar é preciso.” Fernando Pessoa

Aquele que dizia que um charuto às vezes é apenas um charuto lançou também proposta em relação ao ato da criação. Dizia Freud que a “ideia é a ação ensaiando”. Em tempos de anestesia coletiva, o agir protagonista é ingrediente central de transformação, a partir da provocação que vem das ideias. Quando este campo deixa de florescer, torna-se concreto, terminando em mais do mesmo. Ruim para a sociedade – que não se envolve e não propõe, vivendo de reclames -, ruim para as empresas – que dependem do capital humano para inovar e se manter competitiva -, ruim para as relações pessoais – que carecem de ideias que afastem a rotina modorrenta. A avalanche de fardos pesa sobre as costas castigadas do indivíduo, que está na intersecção de tudo.

“Triste não é mudar de ideia; triste é não ter ideia para mudar”.  Francis Bacon

Em Estocolmo, Suécia, aconteceu um experimento pouco acadêmico mas muito perspicaz e revelador. O desafio da companhia de trens era fazer com que as pessoas usassem mais as escadas normais do que as rolantes. Afinal, estas gastam mais energia e não estimulam a atividade física, além de provocar momentos de tumulto. Eles decidiram, então, tornar as escadas normais mais divertidas. Eureka! Durante a noite, prepararam os degraus como se teclas de piano fossem, com sensores e alto-falantes. Cada vez que alguém pisasse um degrau, o som correspondente da “tecla” soaria. O dia amanheceu e os transeuntes suecos começaram a reconhecer na proposta algo valioso. Favas contadas, uma quantidade 66% maior de usuários havia utilizado as escadas normais para subir ou descer. Quantas experiências divertidas fazem parte das escaladas nossas de cada dia?

"Se no início a ideia não parecer absurda, não há esperanças para ela.” A. Einstein

Se o leão é o rei da floresta, o ser humano é o rei da justificativa. Possível resultante da caminhada evolutiva, a farta distribuição de desculpas é esporte universal. Quase todos em quase todo lugar é capaz de enumerar argumentos que expliquem a tirania da repetição em vez da libertação pela criação. Compreender as razões é humano, desafiá-las é divino, portanto necessário. Passo inicial é reconhecer que a criação é um músculo que se atrofia a partir do final da infância e segue este rumo de adulteração enquanto o indivíduo se torna um adulto. No livro “Ponto de Ruptura e Transformação”, George Land apresenta os resultados de testes realizados com um grupo de 1.600 jovens nos EUA. No primeiro teste, as crianças tinham entre 3 e 5 anos e 98% apresentaram alta criatividade; o mesmo grupo foi testado aos 10 anos e este percentual caiu para 30%; aos 15 anos, somente 12% mantiveram um alto índice de criatividade. Teste similar foi aplicado a mais de 200.000 adultos e somente 2% se mostraram altamente criativos. O desenvolvimento da criatividade requer coragem para abandonar a zona de conforto desconfortável e escapar da caverna de Platão, rompendo as correntes que impedem o pleno uso de nossa capacidade mental.

“Cheguem até a borda, ele disse. Eles responderam: temos medo. Cheguem até a borda, ele repetiu. Eles chegaram. Ele os empurrou… e eles voaram.”
Guillaume Apollinaire

Moram no ser humano, além do potencial para a repetição que enferruja, uma transgressora lente que reconhece beleza e nutrientes criativos. A lente do olhar generoso, sinônimo de bagagem leve na alma, permite descobrir cenas cotidianamente poéticas. Ela vem pela decisão de encontrar beleza nos recônditos da vida, pequenos encontros relacionais, sorrisos breves e sem jeito, olhares agradecidos, músicas que combinam com o momento, cheiros e sabores que afagam o corpo físico, carinhos simples, textos bonitos e vento na cara. Tudo tão disponível, diariamente.
Quando provarem – no Dia de São Nunca – que o pessimismo e a visão pobre do rancor e do desamor ajudam a suplantar os degraus, pense em aposentar a lente. Por enquanto, não. Que tal deixar para trás as roupas que não servem mais e liberar espaço para a criação recreativa? Até porque, como lembra Adélia Prado, “só pode com a tristeza quem não perdeu a alegria”.

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