Chico


29 novembro 2014

Chico nasceu doído, antes da hora. Dois meses antes de ver o mundo pela primeira vez, recebeu a primeira leva de pontapés e socos de seu pai. Precipitou-se na vida já órfão, filho de mãe morta pela covardia do pai.

Depois do nascimento, pai fugido, uma vizinha deu abrigo a Chico e suas duas irmãs pouca coisa mais crescidas.

De migalha em migalha, pelos cantos e pelos pastos, cresceu doído, por tanta dor, por tanto tempo, que a pele e a alma calejaram. Apanhava do sol. Da enxada. Das irmãs. Da vizinha. Do padre. E da fome. E da solidão. Apanhava dos guris da região. Filho de assassino merecia apanhar, essa parecia ser a regra. Ele não conhecia outra.

As irmãs, assim que cresceram um pouco, foram trabalhar em casa de família na capital. Chico ficou no mato. Enterrou a vizinha ao lado de sua mãe, em cova rasa, sem reza e sem cruz. Aos 12 anos, estava só novamente. Mas por pouco tempo.

Um dia seu pai voltou. Não tinha aprendido a ter raiva dele. Não tinha nada por ele. Mas passou a ter logo. Passou a ter medo. O pai viera para ficar, anistiado pela amnésia da justiça nesse tipo de lugar.

A trégua da dor durou pouco. Cada dose a mais de cachaça do pai fazia pesar ainda mais o golpe. Muitos vieram. Sem hora marcada e nem razão para acontecer. Filho que mata a mãe no parto merecia apanhar, essa parecia ser a regra. Ele não conhecia outra.

 Um dia chico parou de chorar. Decidiu caminhar. Levantou muito cedo, antes dos bichos, e seguiu pela estrada. Um mês depois foi parar em São Paulo, de carona em carona. Gente estranha que não bateu nele. Solto no mundo, experimentou o maior tempo que podia se lembrar sem levar um único bofete.

Ficou pela rua uns tempos. Aprendeu a se virar. Para rebento acostumado a passar fome, trabalhar e apanhar, viver pelas ruas da cidade grande era coisa fácil.

Chico cresceu. Virou homem. Honesto. Nunca bateu em ninguém. Também nunca mais apanhou na cara e nem com cinto de couro de bode.

Sofria calado o preconceito. Doía ser tratado como gente menor. Parecia que todos sabiam que sua sina era apanhar. Mas ele seguia. Tinha mágoa de não saber escrever nem ler. Do seu nome sabia só o som de ouvir e o jeito de falar. Era Chico. E só.

Voltou a chorar quando recebeu uma carta da sua terra. Seu pai tinha morrido em uma briga de bar. Apanhara feito cachorro sarnento, até o último suspiro. Chico conhecia aquela dor, nasceu daquela dor, e por isso se comoveu. Ninguém merecia nascer nem morrer de tanto apanhar. Chorou por ele, pela mãe, pela vizinha e pelas irmãs que nunca mais tinha visto. E, então, parou de chorar.

Anos melhores vieram. Arrumou trabalho de faxineiro. Não faltava por nada. Salário mínino, dedicação máxima. Entrava mudo e saía calado. Só fazia dar conta do serviço.

Um dia teve que faltar. Sua companheira, Rosa, o primeiro abraço de sua vida, estava nas Clínicas. Uma dor forte na barriga tinha derrubado aquela mulher forte, pau para toda obra. Chico avisou ao encarregado que tinha de faltar. E faltou. Rosa foi internada.

No dia seguinte, chegando à firma, foi chamado ao departamento pessoal. Estava demitido. Chico falou. Não foi ouvido. Chico silenciou.

Antes de sair de lá com a roupa do corpo e nada mais, o telefone tocou e um recado veio como um soco. Era das Clínicas. Rosa tinha morrido. Apendicite.

Ajoelhado, Chico não conseguia chorar. O encarregado da firma pediu que ele fosse embora. Estava atrapalhando.

Deu um último beijo na testa de Rosa, já fria e pálida. Assinou os papéis em xis. Teria de voltar no dia seguinte para acompanhar o corpo até o cemitério.

À porta de sua casa, respirou. Entrou. Recebeu as condolências da vizinha. Assim que ela saiu, Chico caiu de joelhos novamente. Do cômodo ao lado, veio um choro forte, estridente. Agora era ele e o filho de poucos meses. Embalado pelo choro do pequeno, Chico voltou a chorar. Muito. Sem controle. E mais. Até ficar sem fôlego.

Até que veio o silêncio.

Chico se levantou, limpou a cara e se aproximou do bercinho do filho, que já dormia, cansado de tanto chorar.

Por uma hora Chico embalou seu filho, com lágrimas miúdas e doídas que escorriam e salgavam a sua boca. Ele só queria uma coisa. Uma única coisa. Que o filho nunca apanhasse. Que ele fosse menino de verdade. Brincasse. Estudasse. Namorasse. Mas, principalmente, que não apanhasse. No alto daquela oração interna que Chico entoava, o menino acordou. E lhe sorriu. O pai engoliu o último soluço. Tornou a limpar a cara. E seguiu a vida.

Voltou a chorar somente muitos anos depois, quando seu filho com diploma e esposa lhe trouxe uma notícia. Um netinho estava a caminho, e ia se chamar Chico, porque nome de homem mais honrado não havia.

Chico agradeceu estendendo a mão trêmula ao filho. Recebeu de volta um abraço. E juntos choraram a imensa alegria de vencer as dores.