Limpeza de lentes


7 maio 2013

Spinoza foi um grande filósofo. Ou melhor, ele é um grande filósofo. Boas ideias não morrem, mantendo vivos seus autores mesmo em tempos estranhos. Ele teve uma profissão bem simbólica enquanto escrevia seus pensamentos: polidor de lentes. Encanta-me pensar na coerência metafórica entre a prática da filosofia e a atividade de tornar as lentes mais eficientes, transparentes, reais. Eu sei que defender a filosofia atualmente é arriscado. Parece que quem gosta dela necessariamente é contra quaisquer outras formas de pensamento ou expressão populares. Para mim isso é bobagem. Eu posso gostar de Spinoza ou Kant, por exemplo, e me divertir com um programa humorístico. Ou uma partida de futebol. Ou um capítulo de uma novela. Ou um show de pagode. Existem preferências, claro, mas pode me ser interessante e prazeroso beber em fontes distintas, de maneira descompromissada, pelo gostoso esporte do ócio. A muitos parece que quem gosta de filosofia é esnobe e acha que os outros são ignorantes porque não decoraram cada linha da obra de Nietzsche. Mais bobagem. Aliás, o preconceito inverso também acontece. Pessoas que só se alimentam de um determinado tipo de estímulo cultural por vezes rotulam quem se interessa por outros. Quem não sabe que a turma que gosta das baladas fortes imagina que os mais estudiosos e caseiros não aproveitam a vida? Volto às lentes de Spinoza. Limpar nosso instrumento de visão talvez deva ser um ato diário de higiene existencial. Para isso é preciso sair da perversa zona de conforto. Caixinha pasteurizada é coisa para leite. Até porque lentes embaçadas ou sujas dão destaque demais às feiuras dos caminhos, tornando nossos passos morosos e pouco entusiasmados. A sujidade da vida, que existe em grande quantidade, vai se impregnando em nossas lentes do corpo e da alma. Alguém duvida disso? Higienizar a visão é inteligente, simplesmente por nos permitir extrair da vida mais do que seu lado sombrio e distorcido. A filosofia prática pode ajudar bastante. Pensar e repensar a nossa existência. Desaprender para aprender melhor. Esvaziar o jarro para colocar as flores, como pedem os japoneses. Nada de sofrimento desnecessário nesse tipo de atividade. É uma musculatura, que dói no começo e vai se fortalecendo. Coragem e persistência. Alegria e serenidade. Humildade e carinho. Mãos à obra. Para não morrer lentamente em vida por se esquecer de limpar as lentes.