Milionários dos passos


14 agosto 2012

De braços dados com uma senhora um pouco mais jovem, ele caminha a passos muito lentos. Cabelos escassos e brancos, postura pendendo para a frente, calça na altura do umbigo. Não há pressa para chegar ao final do quarteirão de uma das avenidas mais movimentadas do país. Os outros transeuntes ultrapassam a dupla com facilidade, às vezes demonstrando impaciência com aquele ritmo que destoa da média. Olhando de longe, percebo naquele paradoxo uma chance de pensar na vida. Um idoso que caminha lentamente. Inúmeros jovens e adultos que caminham velozmente. Cada um no seu ritmo. Até aí tudo nos conformes. Cada um de nós sabe, ou deveria saber, por quê, com que velocidade e para onde caminhamos. A citada impaciência com o ritmo do outro é que me incomoda um pouco. Alguns chegam a bufar e a lançar olhares de reprovação na direção do idoso. Quem está na correria tem mais direito de caminhar do que quem está desacelerando? O cenário me provocou outra reflexão. Avenida Paulista. Centro financeiro da América Latina. Blá, blá e mais blás. Naquele local, o valor do acúmulo está no ar. Quanto mais, melhor. Especialmente se o "mais" estiver no extrato bancário. Assim, por que não observar a caminhada daquele senhor por outro ângulo? Se o critério é a quantidade acumulada, possivelmente ele está em ampla vantagem frente aos demais. Se foi um garçom, foram incontáveis passos para atender aos pedidos e fazer a festa alheia acontecer. Se foi um carteiro, foram incontáveis passos para entregar cartas aqui e acolá, levando notícias de encontros e desencontros. Se foi um gari, foram incontáveis passos para deixar o espaço público mais belo, a despeito da falta de modos de tantos. Se foi um policial, foram incontáveis passos para ampliar a sensação de segurança, mesmo em uma sociedade que planta violência pela cultura da exuberância material. Se foi um professor, foram incontáveis passos para auxiliar crianças, jovens e adultos a fazerem uma travessia nobre e saudável rumo ao futuro. Em seu extrato existencial de passos dados, aquele senhor é rico, muito rico. Então, amigas e amigos apressadas: se, por vezes, nos esquecemos, não nos interessamos ou não temos a capacidade de valorizar aquilo que os idosos já entregaram de contribuição ao mundo, ao menos vamos aplicar a mesma regra que vale no mundo promiscuamente coisificado para tecermos nossa avaliação. É o mínimo que se pode fazer. Eles são milionários de passos dados. A maioria de nós, geralmente os mais críticos, diga-se de passagem, ainda estamos no estágio da mendicância nesse quesito. Se tudo der certo, um dia nós chegaremos à mesma etapa. Repito: se tudo der certo, pois garantia não existe. Ao passar perto de alguém com essas características, que tal um olhar generoso e esbanjando admiração. Eles construíram na unha e no suor grande parte das trilhas que hoje cruzamos com mais conforto ou menos obstáculos. Eles não são lerdos. Continuam na prova, contabilizando seus passos, lentamente, enquanto houver vida.

<!– AddThis Button BEGIN –>

 

[removed]// <![CDATA[
var addthis_config = {"data_track_addressbar":true};
// ]]>[removed]
[removed][removed]
<!– AddThis Button END –>