No miúdo da vida


13 maio 2013

Uma atividade que me intriga é observar um calendário com todos os dias da vida já vivida. São tantas as folhinhas passadas. Milhares, no mínimo. Se o indivíduo já é, por assim dizer, mais experiente, o conjunto de milhares é ainda mais generoso. Se forem observadas as horas, os minutos, os segundos, a conta vai ficando cada vez mais expressiva. O que foram feitos de todos esses dias? O que aconteceu em nossas vidas em cada uma das horas passadas? Se o tempo vivido fosse um longo texto, seria possível se lembrar dos instantes em que cada letra foi escrita? Não sei sobre a capacidade do leitor, mas eu confesso que não tenho essa memória de elefante. Em meu texto, consigo me lembrar dos sentidos gerais das frases principais, assim como de passagens mais exclamativas ou interrogativas. E, claro, de alguns pontos finais que deixaram marcas e me conduziram ao próximo parágrafo. Para onde vão, então, tantos momentos? Perderam-se no amarelar do calendário? Talvez, sim. Talvez, não. Dizem os especialistas que a memória é como uma musculatura. Pode ficar mais forte ou atrofiar, dependendo da qualidade e quantidade de sua utilização. Parece que algumas pessoas já vêm com o kit lembrança mais robusto, necessitando de menos exercício para resgatar episódios das gavetas de nossas existências. No entanto, não quero transformar este papo em algo neurológico. Minha curiosidade é de outra natureza. O que pode me ajudar a encarnar em minhas células, em meu ser, o miúdo da vida? Se a quantidade de pequenos momentos é infinitamente maior do que aqueles mais grandiosos, me interessa saber como valorizá-los mais, tornando-me diariamente um fruto satisfeito com as sementes que eu joguei e me geraram. Incomoda-me a angústia latente pelo tempo vivido e que eu não consigo acessar tão facilmente. Pode ser pretensão minha querer ter as senhas que me levem a todos os meus arquivos. Provavelmente é pretensão mesmo. Uma solução seria ter um diário de cada ínfimo momento. Pensei, anotei. Bebi café, marquei. Beijei, filmei. Suspirei, gravei em áudio. Dormi, contabilizei a quantidade de tempo dedicada ao sono. Quase um Facebook paranoico. Suspeito que deva existir gente com a capacidade e, convenhamos, a necessária dose de esquisitice, para colocar em prática essa ideia. Mas não vou por aí, principalmente por uma absoluta falta de capacidade organizativa, e também por prezar pela sanidade mental que ainda resiste em mim. Qual será o ponto real que me incomoda? Será mesmo uma dificuldade em lidar com a passagem incontrolável do tempo? Será a chegada da consciência de que realmente sou finito, e que o processo de envelhecimento é democrático, chegando ao meu porto mais dia ou menos dia, e mais a cada dia? Será medo do futuro por não saber o que nele mora? Muitas perguntas. Mas a mais importante delas ainda não está pronta. Está em meu forno de reflexões saborosas. Sinto apenas o seu cheiro, e busco me embriagar em sua gostosura, motivando a vontade de mastigar com mais sabedoria os quinhões doces e salgados, amargos e suaves, que a vida põe em minha boca ou que eu apanho nas árvores escaladas. Se eu não posso controlar o tempo, se eu não sei quanto ainda viverei, se eu não posso mexer no que foi vivido, o que me resta? Se a absoluta maioria de meus dias foram preenchidos por miudezas cotidianas, que me escaparam no caminhar dos dias, o que me resta? Conheço poucas opções. Resta o lamento passivo, canto triste de pássaro angustiado por sua condição de fragilidade, que se esconde em um resto de ninho e priva o universo de suas notas musicais, morrendo diária e lentamente com sua melodia interna incompleta e não compartilhada. Resta a raiva potencialmente contagiosa, urros descontrolados lançados a esmo, tentativa de vingança do animal inconformado pela incapacidade de controlar o imponderável da vida. Ou, e por que não, resta a vontade de valorizar o tal miúdo da vida. Se não tenho memória de elefante, posso investir tudo e mais um pouco no real aproveitamento dos momentos presentes, que no instante seguinte já são passado, e muito em breve estarão lá atrás na folhinha do calendário. Resta salpicar de afeto e coerência as minhas escolhas, acolher meus deslizes, buscar os ajustes e ser generoso, que é diferente de ser complacente, com a minha lentidão de desenvolvimento pessoal. Se eu quero estar em paz com a vida vivida, talvez eu tenha de aceitar o fato de que a existência seja muito menos glamurosa do que nas novelas. Por outro lado, ela pode ser muito mais saborosa e fértil, no mínimo porque é real e é minha. Quero a vida por inteiro, mesmo sem tantos momentos “uaus!!!”. Quero me reconciliar com o presente por sentir latejar em mim, ainda que nas profundezas de um mar de dias, horas e minutos, a herança da miudeza cotidiana, que foram se registrando em mim como recompensa por eu tê-la vivido com tranquila e persistente alegria. Meu sangue é feito de células, pequenas e inúteis individualmente. Mas indispensáveis no conjunto da obra, por se agruparem e multiplicarem vida em mim. Meu caminho, meu existir, é exatamente igual. Que eu tenha a inteligência de apostar nos cavalos certos, que passam diariamente à minha frente, aguardando a minha atitude de montá-los, para juntos cavalgarmos pelas folhas vindouras do calendário. Viva o miúdo da vida! É nele que me faço. É dele que eu quero me alimentar.