O feiticeiro, o anjo caído e o Maffesoli


23 abril 2011

A última segunda-feira foi interessante. Costumam ser assim os dias em que vou para a rua disposto a ouvir o mato crescer.
A caminho de uma reunião em uma empresa, entrei numa perua que me levaria de uma estação de metrô a uma estação de trem. Há alguns dias tive meu carro furtado, o que vem me fazendo optar regularmente pelo transporte coletivo. Apesar dos pesares e limitações diversas, leia-se especialmente a hora do rush e a parca capilaridade em algumas regiões, é uma opção bastante válida que poderia seduzir mais gente se tivesse tanto apelo quanto as ofertas das montadoras de automóveis.
Recém-acomodado na perua, abri um livro que trata do mal estar na pós-modernidade. Instantes depois, uma mulher sentada nos bancos da frente do veículo começou a falar em voz alta. Imaginei que estivesse rezando para si e que findaria logo. Não foi assim. Ela começou a recitar versos apocalípticos, com uma entonação e ritmos cada vez mais viscerais. Emocionada, vociferava contra aqueles que não se entregam nos braços do seu Senhor antes do Juízo Final. Como eu estava absorto em minha leitura ouvindo uma música tranquila pelo fone de ouvido, fiquei na minha. Confesso que havia uma pontinha de curiosidade sobre como se desdobraria aquele culto solo em movimento. Porém, uma nuvem de incômodo se espalhou pelo veículo e motivou o senhor ao meu lado a se manifestar. Inicialmente foram pequenas interjeições do tipo "shiiiii". A cada incursão dele, ela elevava a voz ainda mais, como se já estivesse em um púlpito mirando seu séquito. Ele, então, decidiu partir para a verbalização mais contundente, sugerindo que ela fosse pregar na igreja dela pois, nas palavras dele, ninguém era obrigado a ouvir aquela ladainha. As palavras soaram como o estopim que faltava para o duelo anunciado. Ela se levantou, virou-se para o fundo da perua, e olhou nos meus olhos de forma intensa. Por alguma razão imaginou que eu tivesse sido o autor das interjeições e palavras críticas. Fuzilando-me com suas pupilas dilatadas, chamou-me de Satanás e feiticeiro, determinando que eu arderia no fogo do inferno por conta de minha falta de crença. Tomada por uma sensação indescritível, só fiz rir. Nem sei porque decidi rir. Sei, sim, que as pessoas ao meu lado saíram em minha defesa e então começou uma severa discussão, que durou uns 10 minutos até a chegada no ponto final. Eu, feiticeiro e Satanás recém empossado, segui caminhando digerindo um quitute mezzo bronca mezzo empatia. 

Como foi chata aquela demonstração de falta de civilidade. Exagero do direito de liberdade. Que maravilha que ela fez aquilo, demonstração da liberdade dos dias em que vivemos (em séculos passados, a expressão livre da fé monoteísta transformava o audacioso em churrasco de praça pública). 

Após a reunião na empresa, meu plano era retornar caminhando até a estação de trem. Distância razoável, que exigiria ao menos uns 25 minutos de sola de sapato. Quando iniciei a empreitada, simultaneamente um carro saia do estacionamento à minha frente. Por um instante pensei que seria muito interessante vivermos em um tipo de ordem social em que a carona fosse algo tão normal quanto beber água ou soltar um pum. Afinal, o senhor ia sozinho no carro, faria o mesmo caminho que eu (era uma rua sem saída), com a única e decisiva diferença de estar motorizado. Quando esse pensamento transgressor se despedia de mim, o motorista me ofereceu uma carona. Inicialmente não entendi o que ele disse; pensei que ele queria uma informação, pois não poderia ser verdadeiramente uma oferta de carona, algo que agrediria a minha certeza de que vivemos em um mundo que não dá mais carona. Felizmente eu fui categoricamente vencido pela renovação da oferta; ele realmente estava me oferecendo uma ajuda, alegando que sabia da distância até o trem, visto que havia trabalhado naquela empresa. Aceitei o mimo. Acomodado no banco do passageiro, agradeci com pompa e circunstância o gesto. Ele recusou o que denominou exagerada polidez, lembrando que era o mínimo que alguém poderia fazer pelo outro. Fazia sentido. Parece que andamos distantes do mínimo que se poderia esperar das relações interpessoais entre desconhecidos. Oferecer e aceitar caronas, ainda que incorreto em termos de segurança pública, pareceu algo bom em termos de vínculo humano. No trajeto até a estação de trem, após as apresentações de praxe, o homem me revelou que estava bastante sensibilizado com o que se passara há instantes. Ele havia trabalhado naquela fábrica durante 23 anos em uma importante função na parte da produção. Por motivo de reorganização estrutural, sua função e a de mais centenas de pessoas tinham sido extintas em terras brasileiras há poucos meses, com os postos de trabalho migrando para fábricas espalhadas em localidades diversas mundo afora. Apesar da demissão, o que parecia doer nele como agulha quente em carne viva era outra coisa: necessitando de talões de cheque que ainda era enviados à agência bancária dentro da empresa, ele acabara de ser impedido de entrar no local em que entrara mais de cinco mil vezes (conta arredondada, combinado?) durante mais da metade de sua vida adulta. Transpirava decepção e ira, mansamente. Um anjo humilhado e cadente. A mim, anjo pela oferta de uma improvável carona; aos olhos da empresa, um bebê que, após o corte do cordão umbilical, fora atirado na lata de lixo ao invés de acolhido em um colo materno. 

Como foi chata aquela demonstração de falta de respeito a um antigo colaborador. Exagero do direito materialista de usar e escarrar um indivíduo. Que maravilha de demonstração de resiliência, pois em meio ao drama pessoal, aquele sujeito boa praça fora capaz de olhar para fora da janela e compartilhar o motor do seu carro para me levar mais rápida e confortavelmente ao meu destino.

O Maffesoli não entra de gaiato na história. Exatamente o contrário. Ando estudando a obra desse sociólogo e pensador francês. Arretado demais. Escreveu livros que tratam de temas ligados ao que ele chama de razão sensível, pensamento compreensivo, tribos urbanas e muitos outros. Por compreensão ele nos provoca a pensar no verbete latim comprehendere, que tem o sentido de abraçar, incluir, unir. Logo no início do texto usei uma expressão maffesoliana: ouvir o mato crescer. Nutrir a capacidade de perceber as múltiplas possibilidades de uma mesma situação, definindo e explicando menos e compreendendo mais. Assim, quem sabe, temperamos o fel com chocolate, já que estamos em tempos pascoais. Até porque haja compreensão para continuarmos abraçando um coelho que bota ovos como o saboroso néctar do substrato do cacau!

<!– AddThis Button BEGIN –>

 

[removed]// <![CDATA[
var addthis_config = {"data_track_addressbar":true};
// ]]>[removed]
[removed][removed]
<!– AddThis Button END –>