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Pra onde vão as bolhinhas de sabão?
Filosofar é sempre bem-vindo. Quando o cenário é uma praia e a companhia
é uma criança, a fórmula fica ainda melhor. Eu e meus trinta anos, minha filha
e seus sete.
Depois de comer um milho verde, eu na espiga e ela no prato – o que lhe
causou certo constrangimento pela evidente falta que alguns dentes da frente
fazem –, caminhávamos pela praia, desafiando São Pedro e sua mania de fazer
chover aos domingos.
– Papai, faz bolhinha de sabão para eu pegar?
Sacando o pequeno frasco de meu bolso, atendi ao singelo pedido.
Ventava, o que tornava o desafio ainda maior. Cada rajada de bolhinhas saía sem
rumo, espalhando-se fartamente. Mesmo assim, ela corria, corria e corria ainda
mais. O sorriso em seu rosto a fazia saltar bem alto, trombando com as
bolhinhas de forma entusiasmada.
– Pra onde vão as bolhinhas de sabão, papai?
Uma pergunta despretensiosa, palavras sopradas em meio a um sorriso tão
banguela que dava vontade de sorrir junto, da alma para o mundo.
– Pra onde vão as bolhinhas de sabão, papai? – A pergunta sobreviveu ao
meu descaso inicial, ganhando ares pretensiosos por meio de uma tremenda figura
de linguagem, metáfora inocente daquelas que mexem com a gente. Minha filha
queria uma resposta urgentemente.
– Como as bolhinhas de sabão voam? – perguntei, querendo ganhar tempo,
imaginando que ela hesitaria por alguns instantes.
– Papai, elas voam com suas incríveis asas invisíveis! – respondeu
prontamente.
Touché. As bolhinhas de
sabão tinham asas. É lógico. Se voavam, era porque algum tipo de asa tinham.
Mas se eram invisíveis, como poderia enxergá-las? Ao me perguntar isso,
inicialmente cheio de razão, caiu à minha frente um espelho mágico.
– Pra onde vão as bolinhas de sabão? – perguntou-me a imagem refletida.
– Até você? – reagi, de forma firme. – Eu querendo entender a questão
das incríveis asas invisíveis e vem você me criticar.
– Não é crítica. É boia de resgate. Agarre-se ou afunde ainda mais. –
disparou o espelho.
Decidi me entregar à oferta. Afinal, qualquer ajuda era bem-vinda
naquele momento. Minha filha continuava esperando a minha resposta.
– Papai, pra onde vão as bolhinhas de sabão? – ela repetiu, quase sem
paciência.
O tempo havia se esgotado e eu não tinha uma resposta. Eu também queria
saber, uma vez que a pergunta fazia cada vez mais sentido. Estava evidente que
faltava matéria-prima em minha caixa de brinquedos para responder.
– Filha, você pode me dizer para onde vão as bolhinhas de sabão?
Se ela respondesse à pergunta sem pestanejar, acreditando na sua
resposta, eu mergulharia naquela água fria.
– Papai, as bolhinhas de sabão vão para onde elas quiserem.
Só não mergulhei porque estava com muito frio, daqueles que vêm de
dentro, muito de dentro. A chuva apertou. Coloquei minha filha no colo, abri o
guarda-chuva da filosofia e caminhei de volta para casa.
Este episódio ficou em minha cabeça por alguns meses. A metáfora da
bolhinha de sabão e o mundo que a criança constrói através dela me fascinaram.
Aventuras, expectativas, sorrisos e encontros criados naquela singela
brincadeira. Imaginação é mais importante que conhecimento, já dizia Einstein.
Resolvi colocar isso no papel em forma de história infantil. O que
acontece quando tiram da criança a possibilidade de fazer bolhinhas de sabão,
ou seja, de voarem para onde elas quiserem? Acontece o que estamos presenciando
em larga escala em nosso país, com direitos essenciais ainda ausentes para
tantos.
Como resgatar a fórmula das bolhinhas de sabão, levada pelos abutres
malvados? Aliando-se à educação, alimentação saudável e natureza. A partir
deste enredo, a história foi escrita. Fiquei feliz com o resultado. A
felicidade, entretanto, durou pouco. O incômodo voltou. Decidi contar a
história para mais gente. Transformei-a em uma peça de teatro e pesquisei as
formas de tornar sua produção viável. Conheci o Programa de Ação Cultural do
Estado de São Paulo, por meio do qual empresas podem destinar parte do ICMS
(Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) devido a projetos
culturais. Esperança para o meu desejo de levar a peça para milhares de
crianças, gratuitamente.
Era a primeira vez que eu trabalhava com projetos desta natureza. Sempre
ouvia dizer que somente os bem relacionados conseguiam patrocínio. Após muita
persistência e trabalho, veio a surpresa: o projeto foi aprovado e uma
indústria alimentícia decidiu patrociná-lo. Em 2008, a peça “Pra onde vão as
bolhinhas de sabão?” foi vista inteiramente de graça por 15 mil crianças e
outras centenas de professores e convidados de escolas públicas de São Paulo-SP
e de outras quatro cidades do interior paulista. Cada espectador recebeu um
livro, muitos deles pela primeira vez na vida, levando para casa a história e
as possibilidades das bolhinhas. Em 2013, em uma nova temporada absolutamente
gratuita, dessa vez por meio da Lei Rouanet, que permite às empresas destinarem
parte do Imposto de Renda devido a projetos culturais, a peça será vista por
aproximadamente 10 mil crianças de escolas públicas e organizações sociais.
Os conceitos e as palavras têm um poder incrível. Nascem no plano das
ideias e emoções e se espalham com a capacidade de sensibilizar, provocar,
ilustrar e convidar para a ação, tornando-se embriões das transformações.
Esta experiência com a minha filha e com os filhos de milhares de
pessoas me ensinou o sentido real da palavra ética. Ela vem do grego arcaico ethos e, depois, do latim domus, significando em português a
morada do humano, ou ainda, a nossa casa, nossos valores essenciais. A conversa
com a minha filha, realizada no contexto familiar, na “minha casa”, expandiu e
voou como bolhinhas de sabão para tantas outras casas. Acreditei em Rui
Barbosa, que dizia que a “pátria é a extensão da família”. Acreditei também nas
últimas palavras da história que escrevi: “certamente muitos desafios ainda
existem, e a melhor solução é sempre fazer muitas bolhinhas de sabão. Enquanto
elas nascerem do sopro sincero de vida das crianças – pequenas e grandes – com
a liberdade de seguirem seus destinos, indo aonde quiserem, a alegria e a
fantasia existirão”.