Promessas para idiotas


10 setembro 2010

Sidarta, de Hermann Hesse, descreve a jornada cumprida pelo protagonista que dá nome à obra. Entre idas e vindas, escolhas e desapegos, seu processo de iluminação o conduz a atitudes libertárias, uma delas representada por uma frase provocativa: dada uma situação, Sidarta diz a um interlocutor que “o gesto da sua mão me interessa mais que as suas opiniões”.

Períodos eleitorais me causam estranhezas. Sem eufemismos, causam incômodos.  Talvez porque a eleição seja a materialização de uma escolha, supostamente parida após um processo digestivo do eleitor, a partir de elementos que ele engole espontânea ou forçosamente. As decisões são campos minados, porém redentores, que me intrigam há tempos.

As próximas linhas não serão dedicadas ao momento atual de eleições de representantes políticos, até porque a Justiça Eleitoral poderia reagir caso eu decidisse publicar minhas sinceras opiniões acerca da resistência imoral de alguns monstros engolidores de futuro, que quase transformam a Ficha Limpa em chacota pelo descaramento de persistirem se candidatando. Melhor parar por aqui, até porque o tema central deste texto é anterior ao clicar das urnas. Um pouco de Sócrates para temperar o cozimento, quando ele diz que mais que parir corpos, precisamos aprender a parir espíritos. Quem elege apenas com o corpo, na política ou na vida, perpetua a tragédia; quem elege com o corpo e o espírito, amplia as chances de transcendência e cumprimento do seu destino.

Perdão pelas referências políticas. O cidadão pretensamente inconformado que mora em mim exigiu este pedágio antes da entrega ao tema desejado: atitudes cotidianas a partir de escolhas lúcidas. Como dizem amiúde, “peguei o gancho” – aliás, que gancho é esse sobre o qual todos falam? – da eleição para chegar às eleições menos espalhafatosas, porém mais determinantes, que diariamente somos convidados a fazer. A ética do dia-a-dia, o saber comum que nutre mais que intoxica, a ação mais protagonista que desgovernada. Algo que os gregos chamavam de phronesis, que para Aristóteles era a sabedoria na prática. O tema é recorrente entre grandes pensadores, possivelmente porque o foco nas grandes decisões regionais ou nacionais se transforma em algo muito vago quando não há lucidez no microcosmo das relações mais próximas.

Immanuel Kant pensou, escreveu e falou sobre o esclarecimento, a lucidez. De forma assertiva, o alemão acreditava que a maioridade existencial só poderia ser alcançada pelo indivíduo que se tornasse um cuidador, saindo do papel de vítima e avançando em sua caminhada, apropriando-se dos seus passos e oferecendo a si e ao mundo o melhor que ele pode ser a partir do ele é.

A observação do cotidiano revela que anda faltando paixão na vida das pessoas. Não a paixão no sentido atual, que quase se transformou em antítese do amor, sendo aquela ruim e este nobre. Basta conferir que a origem da palavra é “pathos” em grego e “passio” em latim. Os adolescentes da antiguidade faziam um juramento a Eros, entrelaçados nus por uma guirlanda a uma estátua da divindade, se comprometendo a nada fazer nem nada dizer que não fosse em nome da paixão. Atualmente, patologia é o estudo das doenças, evidenciando a decadência do conceito. Indivíduos que não tem causa, não estão apaixonados por nada, e provavelmente por ninguém, escolhem praticamente como soluçam ou suspiram, sem compreender a razão ou extensão das escolhas. Ainda, tornam-se presas fáceis aos interesses alheios.

Fico com Madre Tereza de Calcutá e a sua proposta de “love in action”, traduzido como “amor em ação”. Faz lembrar o phronesis defendido por Aristóteles, embora, com todo o respeito ao papel histórico do preceptor de Alexandre Magno, prefiro a Tereza que tinha a ambição de fazer bem feito ao que estava por perto, sem a pretensão de explicar ou conquistar o mundo. Aliás, decisões pequenas e coerentes que respeitam a vida caminham muito mais no sentido de explicar e corrigir o mundo do que a erudição cientificista que não consegue mais dar conta do sentido da existência.

Para decidir, entretanto, há de se ter sentimento. Sentir a vida, o entorno, estabelecendo um diálogo contínuo e honesto entre o de dentro e o de fora. A anestesia está para o protagonismo assim como o Coringa está para o Batman. Até a etimologia coloca lenha no debate, pois anestesia significa “sem sentimento”. Viktor Frankl se abraça a Nietzsche em seu livro “Em busca do sentido”, após passar cinco anos em Auschwitz, campo de concentração nazista, lembrando que “o modo de ser depende das decisões e não das condições”. Nietzsche havia dito que “quem tem pelo que viver, aguenta qualquer como”. Relação nítida, clamor pela causa, paixão.

A palavra idiota significava, em sua origem grega, “idiotes”, a pessoa que não ocupava cargos públicos, estando dedicado a questões particulares, como família e trabalho. Mais um conceito que se alterou com os anos, sendo a principal alteração o fato de muitas pessoas serem duplamente idiotas, ou seja, não participarem da vida pública e também seguirem anestesiadas em sua vida individual, alheias, alienadas às eleições essenciais traduzidas em oportunidades singelas de transformação das atitudes e por conseqüência dos locais por onde transitam. Repito: tornam-se presas fáceis aos interesses alheios.

Chegou ao fim a era dos super heróis, que detonam os inimigos com golpes mirabolantes e irreais. Essas promessas só persistem em programas eleitoreiros em busca de incautos. Arsenal importante mesmo na era atual é a lucidez do cidadão comum, que escolhe não ser idiota e decide ser o melhor que se pode ser, em sua vida privada ou pública. Bem antes de exigir voto consciente, parece fazer mais sentido trabalhar pela consciência em ação. Caso contrário, continuará o espetáculo das carroças puxando os bois.

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