Na sala de jantar, em casa de fulano:
– Pai, o senhor tem feito as atividades físicas que o médico pediu?
– Deixa comigo, filha. Começo na semana que vem.
– Mas, pai, o senhor disse isso há três meses!
– Deixa comigo, filha. Da semana que vem n„o passa.
Às duas da tarde, em casa de ciclana:
– Filho, acorda. São duas da tarde.
– Ai, mãe, me deixa. Dormi tarde ontem.
– Mas, filho, e os estudos para a faculdade?
– Amanhã eu vejo isso, mãe. Me deixa dormir.
– Mas você saiu e acordou tarde quase todos os dias desta semana.
– Ah, mãe, não enche. Só se vive uma vez.
Às oito e quarenta da noite, em escritório de beltrano:
– Eu não aguento mais este emprego. Que merda! Vou pedir a conta!
– Você fala isso há dez anos, meu caro.
– Mas eu vou mesmo. O chefe é um idiota, os clientes estúpidos e, tirando você, a equipe é um lixo.
– Você também fala isso há dez anos. E adivinha? Você continua aqui.
– Agora chega.
– Duvido.
Eita palavrões danados. Procrastinar e defenestrar. Se fossem ditos no jogo de futebol de quando eu era moleque, seria pancadaria na certa. Felizmente eu nunca tinha ouvido falar nisso. Nem meus colegas. Mas daí eu cresci e conheci mais do que as palavras difíceis em questão. Ainda, conheci mais do que o sentido das palavras difíceis em questão. Venho percebendo as consequências na vida humana da relação entre o ato de procrastinar e o de defenestrar.
Sem mergulhar muito nos universos do Aurélio e do Houaiss, lembro que procrastinar é deixar pra depois, enrolar, empurrar com a barriga ou outros sinônimos que o valham. Defenestrar, por sua vez, é atirar pela janela. Quem muito procrastina pode acabar defenestrando. Aliás, voltando à minha percepção do cotidiano, vejo esse sádico e triste esporte sendo praticado amiúde. Gente procrastinando decisões e atitudes importantes e, assim, defenestrando a própria vida (e às vezes de outros também).
Saúde física, saúde emocional, emprego, relacionamentos, auto conhecimento, espiritualidade. Existe muito espaço para a prática da procrastinação. Somadas, essa decisão de não realizar o que há tempos se sente que deve ser realizado parece enferrujar o pique vital. Aos poucos, vamos nos percebendo malandros conosco mesmos, cheios de justificativas e vazios de realizações. Assim, de tanto gaguejar no discurso de si mesmo, podemos pegar birra de nosso próprio canto.
Somam-se passos em direção à janela. Vamos nos percebendo traidores de um projeto essencial: ser o que sentimos que queremos e podemos ser. Um pouco mais de lucidez pode nos contar que também vamos nos tornando traidores de um projeto maior, inexplicável, misterioso: quem ou o que nos permitiu vir a este mundo não fez isso de graça. Talvez essa força cósmica, ou qualquer outro nome que represente a sabedoria natural que gera vida, espere, no mínimo, que a gente faça bom uso dos recursos que nos foram emprestados nesta breve jornada terrena.
Procrastinadores não parecem fazer bom uso dos seus talentos. Talvez, e bem provavelmente, possam fazer muito mais e melhor. Mas não fazem. Ou ainda, não fazemos.
Vamos acumulando pendências. Cada uma delas, quando não resolvidas, nos fazem pender para o lado da janela.
Até que, tontos pela cachaça amarga da inércia e das saudades do que poderíamos ser e não fomos, tropeçamos nos sonhos esparramados pelo chão e caímos janela afora.
E como asas não nascem de graça no humano, e como o canto se foi esgotando, o momento pós-defenestração é melancólico. Queda livre de um ser prisioneiro da mediocridade.
Procrastinar as atitudes e, assim, defenestrar a vida. Conheço poucos palavrões mais ofensivos que esses.