Digito estas palavras com a respiração ainda ofegante e as roupas molhadas de suor. Não consegui esperar. Cheguei da rua após correr meus quilômetros de prestação, meu carnê para uma vida futura minimamente saudável, passei direto pela portaria (dando um oi muito rápido para o pior porteiro do mundo, personagem de outro texto que publiquei recentemente), tomei o elevador e subi contando os números dos andares pela janelinha do velho elevador. Sétimo. Cheguei. Saí, abri a porta, liguei o computador e aqui estou, empolgado como um amante às vésperas de tocar pela primeira vez o corpo da pessoa desejada. Ou ainda, ansioso como um intenso devoto de alguma religião que comete um pecado e se vê sufocado até o momento da libertadora confissão. Hoje, agora, vocês que decidiram ler estas palavras serão testemunhas de um encontro explícito de amantes ou, se preferirem por julgarem moralmente mais adequado, serão os confessores a me conceder uma redenção. Respiro melhor. Puxo o ar com menos angústia, soltando-o em um ritmo menos tenso. Mas não quero perder o sabor da experiência, que ainda lateja dentro de mim. Às sete e meia da noite de hoje saí para correr. Realmente encontro nesta atividade física um poderoso instrumento de liberação de tensão reprimida. Os resultados em meu corpo, mente e alma são deliciosos, especialmente após horas pensando, escrevendo, rabiscando, lendo e tecendo e entretecendo as linhas que comporão a minha dissertação de mestrado. Durante boa parte do dia me atirei nos braços de Joseph Campbell, considerado um dos maiores especialistas de todos os tempos em mitologia comparada. O homem viajou literalmente o mundo todo conhecendo rituais, tradições, mitos e lendas de diversas etnias. Meu maior interesse na vasta produção de Campbell é a jornada do herói, tema que segundo ele mora na ancestralidade de nossa espécie, compondo as notas de nossas composições cotidianas há milênios. Desde a noite dos tempos, ainda segundo ele, agimos motivados por impulsos que nos chamam à aventura, nos apresentam mestres, desafios e a oportunidade de regressar para compartilhar o elixir capaz de melhorar a nossa vida e de quem nos cerca. O que eu não desconfiava, contudo, era que a noite do dia reservado à intelectualidade me apresentaria um caso real, puro e bruto, de alguém que está vivendo uma jornada de herói na escuridão das noites de São Paulo. Pois bem, cabeça cheia, idéias agitadas como átomos em estado de micareta, comecei a correr. Tinha a decisão de passar pela casa da mãe da minha filha, onde a pequena (que não é mais tão pequena assim) estava reunida com outros três colegas de escola em torno de um trabalho a ser entregue na segunda-feira. No meio do caminho choveu. Misturou-se em mim o suor quente e a água fria. O céu parecia bater fotos com flashes deveras luminosos. Felizmente a demonstração de força de São Pedro, Zeus ou quem quer que habite os céus, teve início quando eu já estava nas cercanias do meu destino. Cheguei, subi, comi dois cachorros-quentes (de porte médio, viu?), conversei com a filhota, seus amigos e sua mãe, que hoje é uma grande amiga. Algum tempo depois peguei meu caminho de volta. Ainda tinha alguns quilômetros pela frente, a serem enfrentados já sem o projeto de dilúvio e estabelecendo um certo diálogo com as salsichas que buscavam se acomodar em alguma parte de meu sistema digestivo. Passos, passos, passos. Respira para não forçar. Cuidado nos cruzamentos. Todo cuidado é pouco numa cidade que mata pedestres, motociclistas e ciclistas como se mata mosquito em cidade praiana. Eu estava a poucos quarteirões de um encontro notável. Nas imediações de minha casa eu vi algo que me fez parar de correr imediatamente. Deitado no estacionamento de uma loja de pneus, coberto por um cobertor daqueles de cor cinza, estava um morador de rua. Encontrar pessoas naquele local no período da noite não é uma novidade, uma vez que existe uma generosa cobertura capaz de oferecer pelo menos uma proteção contra a chuva. Ilusória proteção, pois há poucos dias o noticiário deu conta de mais dois moradores de rua que foram atacados por sete jovens em uma cidade próxima a Brasília, tendo seus corpos covardemente incendiados. Um deles morreu e o outro permanece internado em estado grave. Algo me fez caminhar em direção ao cidadão que lá estava: concentradamente, ele lia um livro de capa azul. Aquela cena me mobilizou. Eu precisei me aproximar, interrompendo a sua leitura. – Boa noite, posso chegar?, perguntei. – Claro. Boa noite. – Desculpe te atrapalhar, mas eu fiquei curioso vendo você lendo. Como eu gosto de ler resolvi perguntar o que você está lendo. – Sem problema. Eu estou lendo Entre os monges tibetanos, disse ele. Assim foi o início da nossa conversa. Embora eu saiba e sinta que é uma espécie de preconceito se surpreender com um morador de rua que gosta de ler, confesso que eu estava surpreso. E a surpresa só foi aumentando com o avançar da prosa. Aquele homem de estatura mediana, barba por fazer, cabelos grisalhos e expressão serena se ajeitou, colocou o livro de lado e se mostrou disposto a dialogar. – Você gosta de ler?, ele me perguntou. – Gosto, sim., respondi. – E o que você gosta? – Ah, várias coisas. E você? – Eu também gosto de ler várias coisas. Qual foi o livro que mais você gostou? – Rapaz, são tantos. Mas se tiver que escolher um eu fico com Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Marquez. E você? – Revolução dos bichos, de George Orwell. Se bem que o 1984, também do Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, também são muito importantes para mim. Reforçando o preconceito que eu confessei há instantes, eu estava de boca aberta. Ele não apenas conhecia livros bastante importantes das últimas décadas como fazia comentários muito interessantes sobre cada um deles e situação sociopolítica no Brasil e no mundo. O diálogo acima está absurdamente resumido, pois conversamos sobre os livros que ele citou por muitos minutos, sentados naquela sala improvisada de estudos da vida. Em um dado momento, não resisti e fiz uma pergunta que não conseguiu ficar estacionada em minhas idéias. Antes dela, no entanto, perguntei o nome dele. Ele me respondeu. Um dos nomes mais comuns na língua portuguesa, mas que para mim tem a melodia doce do amor de filho: José. Homônimo de meu saudoso pai, que também era afeito aos livros e à cultura, aquele José recebeu a minha pergunta e a respondeu generosamente. – José, você vai me desculpar, mas eu não consigo não perguntar como aconteceu de você vir morar na rua. Você se importa de contar? – Claro que não. Foi uma questão de família. Não vou entrar em detalhes, mas a minha mãe se afastou da família dela por algumas motivos particulares. Ela não era mais aceita por eles, e os filhos que nasceram depois disso foram rejeitados por todos. Quando eu fiz 23 anos, em 1994, saí de casa e fui morar na rua. Eu precisava encontrar meu caminho. Querendo ou não, ele havia revelado a sua idade. Uma conta simples me fez perceber que ele tinha 40 ou 41 anos. Sua aparência, no entanto, era de alguém com pelo menos 10 anos a mais. Seguiu contando a sua história nas ruas, inclusive de episódios em que teve de se valer da violência para salvar sua vida. – Às vezes, quando a gente mora na rua, precisa impor algum respeito. Mas para mim essa é a pior parte de viver assim, pior até que não ter uma casa e comida garantidas. Viver na base da violência é o pior castigo que existe. Posso ser ou estar sendo muito inocente, mas acreditei nas palavras dele, pois seus olhos se apresentavam para mim de forma coerente com o que saía de sua boca. Ele realmente parecia um ser pacífico, que optara pela violência muitas vezes para escapar à perversidade humana. Com o avanço da conversa, ele me contou como teve contato com os livros pela primeira vez. – Uma época eu fui para Belo Horizonte. Eu queria ficar longe de todo mundo que eu conhecia, e escolhi um lugar que eu sabia que era uma cidade grande e que também tinha muitas opções de cultura. Chegando lá eu comecei a trabalhar puxando carrinho com produtos recicláveis. Um colega meu sempre arrumava livros velhos para vender para reciclagem, e eu sempre achei estranho a gente rasgar aquilo tudo. Um dia caiu na minha mão A revolução dos bichos, do George Orwell. A capa era bonita e o nome me chamou a atenção. Foi a primeira vez que eu li um livro inteiro, aos 27 anos. Na primeira vez que eu li eu não entendi nada. Mas li de novo, e mais uma vez. Fui entendendo a mensagem do autor, e percebendo que ele estava falando da gente mesmo, só que com personagens bichos. Não parei mais de ler. Ao mesmo tempo que isso foi bom, e continua sendo bom, também me fez passar por alguns problemas e quase morrer. Quando a gente começa a pensar e ver como as coisas são, a gente começa a incomodar. Eu comecei a questionar umas coisas na cooperativa de reciclagem onde eu trabalhava, e os líderes não gostaram. Eu vivia dizendo para os catadores que a gente tinha de sacudir as pulgas, e os chefões estavam ficando muito bravos comigo. Um dia sofri uma tentativa de homicídio e tomei uma facada que acertou a veia do meu coração. Foi por pouco. Resolvi voltar para São Paulo e estou aqui há mais de 10 anos. Eu ouvi cada palavra dele com muita atenção. Como a sede do Canto Cidadão, ONG na qual eu trabalho, fica bem próximo ao local, ofereci a nossa biblioteca como fonte de novas leituras. Ele me agradeceu bastante. Quando ele estava terminando de contar a sua aproximação com os livros, e os riscos do pensamento que desafia a opressão e os desmandos de quem usa o poder para se servir e não para servir, dois carros estacionaram a cinco metros de nós. Desceram duas moças bem jovens e um rapaz. Os três eram descendentes de orientais, bem possivelmente japoneses. Eles estavam trazendo lanche para o José, gesto repetido todas as sextas-feiras por esse grupo que faz parte de uma ONG da zona sul de São Paulo, e que percorre quatro grandes rotas nessas noites para entrega de alimentos. Eu conheço muitos que classificam esse tipo de trabalho como assistencialismo que não resolve nada. Talvez se os críticos criticassem menos e ajudassem mais com ações práticas talvez esses remédios de efeito imediato não fossem mais necessários em algum tempo futuro. Eles ficaram um pouco surpresos com a minha presença, mas o José prontamente explicou que nós estávamos trocando uma idéia sobre literatura e política. Os três ficaram mais surpresos ainda. Após receber o lanche das mãos de uma das moças, assim como um livro, José começou a nos dizer algo muito especial. Antes das palavras dele, explico que o livro que ele estava lendo também tinha sido levado pelos jovens na semana anterior, e agora era a hora de trocar por um novo, dado que José já estava na segunda leitura do Entre os monges tibetanos. Eles parecem compreender que nem só de pão vive o ser humano. Dirigindo-se aos jovens, ele disse: – Pessoal, eu estive pensando uma coisa. Mesmo que a gente só se veja uma vez por semana, eu penso muito em vocês. Percebo que vocês querem me ajudar. Eu também quero me ajudar. Tive a idéia de fazer uma gincana de materiais recicláveis. Eu estou escrevendo como seria e queria saber se vocês topariam participar. A meta seria arrecadar os produtos pra gente vender e eu conseguir alugar um quarto. Daí alugando um quartinho eu vou fazer aqueles cursos que eu já disse e vou conseguir um emprego. Tanto eu quanto os outros três jovens ouviam a proposta de José com muita atenção e emoção. Ali estava um herói em busca de redenção. Estas minhas palavras não tem qualquer sentido de idealização, até porque não me sinto eticamente autorizado a sentir pena de quem quer que seja. Penso que sentir pena é decretar o estado de humilhação alheio. Prefiro muito mais me comover, ou seja, mover-me junto. Quando me refiro a ele como herói, estou lembrando da jornada proposta por Joseph Campbell, que fala de redenção, superando de desafios e retorno com o elixir. Eu estava de carona com José naquela proposta, e ele continuou. – Na semana que vem eu vou mostrar umas coisas que eu estou escrevendo. Quanto dá pra arrecadar com cada material, quanto custa o aluguel do quarto e tudo mais. Naquele momento eu não resisti e interferi. A idéia soava como música para mim. Criar uma gincana na qual voluntários doariam seus materiais recicláveis regularmente para que José vendesse num depósito e pudesse pagar um quartinho para viver. Como contrapartida, José faria cursos de capacitação profissional e arrumaria um emprego. Ele me pareceu consciente de que um novo projeto de vida passa por mudanças importantes. Um tremendo e verdadeiramente transformador círculo virtuoso, capaz de promover uma radical mudança de vida a estes e outros heróis. Naquele momento tomei a decisão de participar, trocando e-mail com os jovens da ONG de assistência a moradores de rua. Vamos nos falar em breve para, juntos com José, colocar mais pingos nos "is" dessa idéia revolucionária. Quem sabe eu consiga ajudar na concepção da proposta da gincana, assim como espalhar o desafio aos meus milhares de contatos (inclusive você, que agora lê este texto) e, assim, colocar ingredientes dos bons nessa receita de elevação da vida. Despedi-me de José e dos três jovens e vim correndo para casa, buscando registrar o episódio e fortalecer em mim o compromisso de ajudar esta e outras pessoas. E por falar em revolução, lembro-me dos bichos de George Orwell. Bichos que somos nós, que enquanto não nos olharmos com menos perversa indiferença, talvez não tenhamos nem o direito de sermos comparados aos bichos no sentido literal. A comparação me parece ofensiva aos demais mamíferos, aves, peixes, insetos e afins. Sinto que esta história está só começando, e que muitos outros episódios deste surpreendente e oportuno embalo de sexta-feira à noite vão acontecer. Desde já, aos corajosos que chegaram até o final deste texto, fica o convite para que estejam atentos. Existe uma grande probabilidade de eu convidar vocês para virem comigo nesta jornada de heróis. De mãos dadas, coração alegre, espinha ereta, sorriso largo e coração tranquilo as pedras do caminho podem se transformar nas paredes de casas para tantos e quantos Josés. Vamos juntos?
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