Tragédia para grego nenhum botar defeito


8 agosto 2011

Ésquilo, Eurípides e Sófocles teriam muito trabalho se ainda estivessem por aqui. Autores gregos que viveram há mais de vinte séculos, deixaram como contribuição tragédias que até hoje são conhecidas, estudadas e encenadas. Por que estariam assoberbados de oportunidades de criação nos dias atuais? A resposta poderia ser construída pela observação de estatísticas generosamente divulgadas nas áreas da(s) saúde(s), educação, meio ambiente, relacionamentos interpessoais e outros. A espécie humana, cada vez mais criadora, parece estar se aprimorando na sinistra arte de construir condições trágicas pelo excesso de conhecimento aplicado sem sabedoria. Para escaparmos um pouco da síndrome da primeira resposta, um pouco de passeio por fatos e provocações.

A palavra tragédia vem do grego tragoidia, “peça ou poema com final infeliz”. Aparentemente deriva de tragos, “bode”, mais oidea, “canção”. E isso viria do drama satírico, onde os atores se vestiam de sátiros, com suas pernas cabeludas e chifres de bode. Uma das características essenciais para a classificação de uma obra como uma tragédia é o seu clima de tensão permanente e a apresentação desde o início de sinais que apontam para um inevitável final trágico. 

Qualquer um dos autores citados se esbaldaria se decidisse retratar dramaticamente a forma como o ser humano contemporâneo vem tratando, por exemplo, a questão das possíveis intersecções entre a saúde física e a mobilidade – ou falta dela – nas cidades de todos os portes.

Primeiro ato
O Denatran, Departamento Nacional de Trânsito, divulgou no início do ano que o Brasil fechou 2010 com uma frota de 64,817 milhões de veículos registrados. Em dez anos, uma escalada de 119%, traduzida pela presença de mais 35 milhões de veículos nas ruas, levando em consideração carros, motos, caminhões e outros tipos de automotores inseridos no cadastro desde 1990. 

Recorrendo às informações de outra fonte, o Censo IBGE 2010, verificamos que vivem no Brasil 190,732 milhões de pessoas. Calculadora em punho, chegamos à conclusão que atualmente o país tem uma média de um carro para cada 2,94 habitantes. Como tragédia pouco é bobagem, estatísticas divulgadas em julho de 2011 indicam que o número de carros vendidos no primeiro semestre comprovam um crescimento de mais de 10% em relação ao mesmo período de 2010. 

Segundo ato
A OMS, Organização Mundial da Saúde, sugeriu em relatório recente que aproximadamente 2 milhões de mortes anuais no mundo podem ser colocadas na conta do sedentarismo. Adeptos desta "prática" são candidatos bastante mais propensos à hipertensão arterial, infarto agudo do miocárdio, obesidade, depressão, déficit cognitivo, ansiedade,  diabetes, câncer, aterosclerose, artrose, doença pulmonar, osteoporose, aumento do colesterol ruim e, ainda, maior sensação de cansaço, mau humor e indisposição. 

Exercício: em nossa rede de relacionamentos mais próximos, quantos casos desses podem ser observados? Dentre eles, quantos estão presentes em pessoas sedentárias?

Exemplo (certamente não o único): estudo divulgado em meados deste ano no The Lancet, um grupo internacional de pesquisa que atua em colaboração com a Organização Mundial de Saúde, apontou que as taxas de diabetes tem aumentado ou permanecido igual em quase todas as partes do mundo durante as últimas três décadas. A cifra já supera 347 milhões de casos em todo o mundo. Somente na China são 138 milhões. Nos EUA, 36 milhões. Mais conhecimento e tecnologia não estão resolvendo. As duas maiores potências econômicas no topo puxam a fila do fracasso em termos de bem estar. 

Terceiro ato
Durante mais de 2,5 milhões de anos a espécie humana caminhou bastante, literalmente, pela necessidade de alimento ou busca por proteção. Nas últimas décadas, são inúmeras as propostas de facilidades criadas para imobilizar o corpo. Como alguém tem de produzir e comprar toda a parafernália oferecida, cada vez mais da agenda é entregue ao trabalho. As horas fora do local de produção (escritório, fábrica ou rua) são usadas para comprar ou se deslocar, basicamente. Nas médias e grandes cidades, o tempo disponível para cuidar do corpo (e, por tabela, da mente) é surrupiado em ordem crescente por filas modorrentas de carros a qualquer hora do dia ou da noite. Dante Alighieri classificaria seu inferno de playground se passasse uma semana observando a Marginal Tietê às seis e meia da tarde.

Tragicomédia
José Simão, cronista muito bem humorado, diz que o Brasil é o país da piada pronta. Talvez seja coerente também dizer que o ser humano é a espécie da tragédia pronta e anunciada. Observando os números expostos, até que seria uma boa piada se não fosse verdade. Caminhamos a passos largos para um colapso generalizado em termos de saúde e mobilidade, uma atrapalhando a outra, em justa equação de vice-versa. Aparentemente, somente traumas expressivos serão capazes de frear o ímpeto de consumir veículos ou a pandemia da preguiça sedentária. O cômico é verificar que, aos moldes do "Discurso da servidão voluntária" de Etienne de La Boétie, temos fatos incontestáveis que anunciam a tragédia e mesmo assim continuamos a sua construção diariamente. Será que confirmaremos a inevitabilidade que marca esse tipo de espetáculo? Voluntários construindo seu próprio cadafalso? Em uma derradeira analogia teatral, talvez seja oportuno lembrar que uma boa história é escrita por protagonistas. Que eles se levantem do sofá e provem que todo o conhecimento gerado pela humanidade não se reverterá em seu próprio presente de grego.