Vingança agridoce


29 julho 2013

Às seis da manhã ela acorda. Xinga o despertador que também é câmera fotográfica, computador, um punhado de outras coisas e, vez em quando, telefone celular. Não levanta de pronto. Pede mais cinco minutos ao senhor do tempo. Cochilo leve, crescente, ambicioso. Antes, todavia, de se entregar a Morfeu, o execrável ruído, protótipo de trombeta do Apocalipse, invade seus ouvidos novamente. Ela se rende e dá início à rotina cotidiana, tão igual, mas tão igual, que só permitiria ao pintor um quadro figurativo. E olhe lá. Executa mecanicamente as etapas do banheiro. Chuveiro, dentes, maquiagem, desodorante, cremes diversos. Mais maquiagem. Cabelos. Mais um retoque. Sente-se insípida e inodora. Suspira entediada. Perfume. Inspira forte. Quer sentir a essência original, que em instantes se misturará a dezenas de outros odores populares. Espelha-se. Nua, desafia o reflexo. Abre o armário. São várias as opções que lhe agradam. Nenhuma delas pode ser escolhida. Ao menos não em horário comercial. Veste-se. Ou ainda, uniformiza-se. Não volta ao espelho. Teme o escárnio perverso. Teme maldizer a imagem. Limita a autocrítica ao pensamento. Vai à cozinha. Torrada murcha com margarina. Café solúvel, sem leite, que azedou após a terceira ferveção. Troca de bolsa sem paciência. Despeja badulaques de uma para outra. A absoluta maioria vem transitando há tempos, sem utilidade, entre uma e outra peça de quase-couro e quase-grife. Caminha até o ponto de ônibus. Sacode por trinta minutos. Em pé. Sintoniza-se com a indiferença reinante. Desce. Quase torce o pé na calçada desgraçada. Xinga o prefeito. Xinga a distância até a estação do trem. Ensardinha-se no vagão por quarenta minutos. Leva uma cotovelada certeira no desembarque. Dói-lhe o seio esquerdo. Farto de carne, mais farto ainda da brutal repetição das covardias impunes. Bate o ponto. Senta-se em sua baia. Bovinifica-se ao longo de seis horas, balbuciando palavras que saltam do roteiro da tela e invadem os ouvidos de clientes insatisfeitos. Sente-se cúmplice daquela estrutura inócua. Mas não se condena ao extremo. No fundo deseja que tudo aquilo exploda, em especial a sua chefe. Vinga-se nos quinze minutos de intervalo futricando com duas colegas. O tema predileto é o provável celibato daquela mulher enrugada e gorda. Bate o ponto na saída. Faz o caminho de volta para casa. Igual. A única diferença é que os odores e a violência gratuita dos companheiros de jornada atingem o limite do suportável. Chega em casa. Come qualquer porcaria. Desaba no sofá. Troca mensagens com amigos pelo computador, enquanto vê a mediocridade virar celebridade nas novelas. Deseja intensamente o final de semana. Segunda-feira. Terça-feira. Quarta-feira. Quinta-feira. Sexta-feira. Enfim, renasce das cinzas. Entre sexta e domingo ela é outra. Deixa de ser um crachá, um bilhete único e um CPF e volta a ser mulher. Investe em seus atributos físicos. Capricha dolosamente no decote e no comprimento da saia. Seca zelosamente os cabelos. Afroditaze-se. Usa as mais eficientes, e caras, maquiagens. Borrifa o melhor perfume. Reconcilia-se com o espelho. Crê na delícia da noite. Vai de carona com uma amiga até uma danceteria. Se durante a semana ela se arrasta pelo mapa do suor diário, nas noites de balada ela desfila. Dança. Glamuriza-se. Ri alto, bebe um coquetel oferecido pelo rapaz esbelto. Flerta, dá corda e volta para a pista de dança. A noite é longa. Cabem muitos mimos em sua sacola de vaidades. Aceita mais um coquetel, vindo de outro remetente. Baixinho atarracado e tatuado. Bom papo. Tece elogios sem fim. Ela ouve e abastece o potinho de autoestima. Não beija na boca. Permite palavras ao pé do ouvido. Trocam telefones e ela volta para a pista. Durante horas, até o primeiro anúncio da aurora, ela repete esse refrão. São muitos os homens que a cortejam. Ela sabe o que a maioria deseja. Ela sabe ainda mais o que ela deseja. Escolhe um deles. Beija muito. Acalenta-se nos braços fortes. Ele malha, sem dúvida. Mora sozinho. Tem carro. Quer a sua companhia para o café-da-manhã. Propõe a troca da vodka pelo vinho. Combina mais com o clima de romance que ganha força. Mas as taças estão em sua casa. Vão. Bebem dois goles de vinho. Desnudam-se. Possuem-se. Suam. Dormem. Acorda às duas da tarde. Na verdade é acordada às duas da tarde. Ele precisa sair. Tem um evento familiar. Despedem-se na estação do metrô. Beijo simples e curto, sem as afetações dionisíacas da madrugada. Trocam telefones e prometem se ver novamente. Ambos sabem que isso não vai acontecer. Ela não se importa. Só quer chegar em casa, comer algo e não fazer nada. Sente-se bem. Antes de não fazer nada, entretanto, toma um banho. Metodicamente cumpre todas as etapas do dia seguinte. Está de volta ao estado original. Só que abastecida. De quê? De algum tipo de afeto, sem ilusão, sem pretensão, pragmático, curiosamente saudável. Durante toda a semana ela é invisível. Cumpre tarefas determinadas por outrem. Não tem controle sobre relógio ou itinerário. Troca sua vida por dinheiro. Sustenta-se. Paradoxalmente, a mesma rotina que a sustenta a fragiliza. Por isso o final de semana é vital. Abandonou o julgamento moral próprio e o dos outros sobre o seu comportamento potencialmente leviano. Cansou do discurso das tias, avós e das pessoas de fé. Busca, por si só, a redenção e algum tipo de afeto. Afeto. Torto, mas afeto. Durante a semana ela é invisível. Facilmente descartável. Não tem poder algum. Aos finais de semana algumas nuances a energizam. Pode ser que seja descartável, mas deixa de ser invisível. Torna-se desejável, disputada, poderosa. Troca sua intimidade pela sensação de existência e vitalidade. Se ela pensa em namorar, casar, ter filhos? Sim, desde que não venham com sabor de segunda-feira.