José Saramago que me perdoe pela ousada referência à sua obra, uma das mais importantes da história da literatura mundial. Mas hoje eu vivi uma experiência que me fez mergulhar naquele universo de escuridão existencial.
Ver e não enxergar. Enxergar e não ver. Olhar e não ver e nem enxergar.
Quanto daquilo que está à minha frente, no cotidiano dos nossos passos, escapam à minha percepção?
Quantas soluções, esclarecimentos, aprendizados e pistas oportunamente importantes são desperdiçadas porque o meu olhar está viciado, ou ainda, e menos condescendentemente, preguiçoso e automatizado?
Na história que teve o seu desfecho hoje, a Giva, assistente para assuntos estéticos e higiênicos de minha casa, teve papel protagonista. Na última sexta-feira ela veio, como quase de costume, executar sua jornada semanal aqui no meu pedaço. Veio e foi, como o faz há tanto tempo.
Eu cheguei em casa, fiquei um tempo e decidi sair de carro. Onde estavam as chaves? Procurei, procurei, procurei mais um pouco. E mais um pouco. Nada. Gavetas e mais gavetas reviradas. Ato contínuo, imaginei com pouca gentileza que a Giva tinha inventado um novo lar para as chaves. Ledo engano. Vil injustiça.
Por sorte quase sobrenatural eu me lembrei onde estava a chave reserva do carro. Peguei-a e fui, encucado para chuchu.
O final de semana passou e eu continuava sem as chaves originais. Durante o final de semana fiz algumas buscas adicionais. Nada de encontrá-las. Só me restava telefonar para a Giva ou aguardar até a sua próxima visita.
Mas hoje, chegando do trabalho, sentei-me no sofá da sala por um instante. Ao olhar para a porta, vi algo diferente na parede da sala, no exato caminho que leva à porta de saída: um porta-chaves de três ganchos pendurado. Em um dos ganchos, tchananan, as chaves desaparecidas.
Elas estavam lá desde o dia em que eu achei que tinham sido abduzidas ou cruelmente escondidas pela faxineira. Eu é que não as tinha visto, à altura dos meus olhos, escancaradas e se oferecendo às minhas pupilas. Não as vi porque não estava acostumado a olhar naquela direção, ainda que óbvia e tão acessível.
Será que não estou enxergando sem ver, vendo sem olhar, olhando sem enxergar coisas importantes, muitas vezes muito mais importantes que as chaves?
Nesse caso eu tinha uma reserva, uma solução prática e rápida. Mas em outros contextos eu posso estar mediocrizando a minha caminhada por descuidar diariamente das lentes que miram o mundo. Quanta novidade pode existir nas mesmas cenas que eu vejo todos os dias?
Até porque, sinto informar a mim mesmo, a maior parte dos dias não se dá em meio a cenários novos e repletos de aventuras inéditas. A maior parte da vida se dá em meio à rotina, ao arrastar das folhas do calendário. Talvez por isso mesmo eu deva me dedicar mais zelo à limpeza das lentes, ampliando as chances de encontrar novidades e surpresas naquilo que já me pertence e já me rodeia.