Monstro do Vestibular


9 janeiro 2011

Dia de vestibular. Milhares de pessoas em busca do caminho para o garimpo. Por meio do curso superior, a expectativa de encontrar seu quinhão de ouro.

Agravante: dia de segunda fase de vestibular. Muitos outros milhares de competidores já tombaram.

O vestibular, da forma como é utilizado hoje, é um monstro insaciável devorador da verdadeira educação. É uma prova inconteste, ao menos em minha opinião, da mediocridade do nosso processo de formação de seres humanos.

Num outro dia eu passei em frente à uma escolinha de ensino fundamental, que atende crianças a partir de seis anos. Na fachada, uma estúpida frase insinuando que naquele local os filhos dos iluminados pais que o escolhessem seriam preparados desde o início para superar o desafio do vestibular. Lástimável.

Em palestras realizadas na USP, Unicamp, ITA  e outras instituições de ensino superior, já levantei a questão junto aos reitores que estavam presentes. Perguntas simples, que fazem ainda mais sentido quando se tratam de escolas públicas: além de verificar a capacidade de retenção de informações do candidato, por que não pedir um projeto de vida a ele? Ou seja, o que ele pretende fazer com o conhecimento com o qual supostamente tomará contato durante o curso? E mais, como a sabedoria (conhecimento temperado pela ética) adquirida seria oferecida à sociedade?

Não ouvi respostas.

Certamente imaginaram que eu não fazia ideia do que estava dizendo. Afinal, são eles os especialistas em educação. Discordo. São eles os especialistas em instrução. E pela exclusividade no instruir, aqueles que superam o abominável vestibular e caem no emburrecedor mercado do trabalho, perpetuam a lógica que aprenderam desde muito cedo: domínio dos "comos" e quase total ignorância dos "por quês". Ainda mais triste é perceber que essa fórmula carcome mais que o profissional, invadindo as vidas pessoais e sociais das vítimas anestesiadas. 

Tudo está pior do que poderia na educação por conta do vestibular. Já que eu estou criticando de forma tão assertiva, certamente eu devo ter a resposta para a encrenca. Perdão, mas não tenho nenhuma poção mágica em meu caldeirão. Só sei que assim não serve mais.

Sinto, e apenas sinto, que a preparação para a vida adulta, ou seja, o processo de educação das crianças e jovens, deveriam atender a outros deuses que não os sádicos do tipo Fuvest, Unesp, Unicamp, federais e outras estaduais Brasil adentro. Esses são os falsos deuses, que prometem o Olimpo em termos da precisão cirúrgica da técnica, seduzindo todos os seus discípulos – escolas dos ensinos anteriores ao superior – a venderam a alma dos seus frequentadores ao oráculo débil das ferramentas. Nem entrarei no mérito das escolas particulares, que além de oferecer a mesma ilusão, ainda cobram caro, muito caro, pelo pesadelo que virá.

Antes da técnica, a ética. Essa lei dos povos antigos nunca esteve tão desprezada. O vestibular grita em alto e bom som que o raciocínio vale mais que o caráter ou a capacidade artística ou a inteligência emocional do candidato. Fórmula retrógrada, fruto da preguiça e arrogância das grandes instituições, incluindo obviamente o nosso atrapalhado Ministério da Educação. Aliás, proponho alterar o nome do MEC para MIB, Ministério da Instrução Bitolada. Não consigo pensar em outra imagem que não aquela tapadeira que cavalos, burros, asnos e afins utilizam para não sair do caminho desejado por quem está com as rédeas nas mãos.

Tenho um filha de 11 anos. Já está sentindo o hálito podre do vestibular. Mesmo nas escolas ditas "alternativas ou progressistas", com raríssimas exceções, por detrás da perfumaria retórica reside a mesma engrenagem comercial: quanto mais alunos nossos superarem difíceis vestibulares, mais clientes teremos.

Volto à minha filha.

Há tempos preocupo-me com os seus verdadeiros talentos. Pesquiso-os, observo-os, incentivo-os. A escola atual não faz isso. A escola de sempre, o afeto dos pais e responsáveis, deveria fazê-lo. Quero seguir de mãos estendidas à busca de minha filha por seus verdadeiros talentos, heranças cósmicas que ela recebeu.

Só me resta continuar dizendo onde puder que a lógica do vestibular é burra e reduz o potencial humano. Só me resta continuar provocando a minha filha, da qual sou diretamente responsável, a ser mais inteligente que aqueles que a avaliarão.

Aos que forem aprovados, boa sorte. Que os "por quês" habitem sua vida muito mais que os "comos". É a sua única boia de resgate.

Aos que forem reprovados, observem o sentido da palavra. "Re-provar", provar novamente. Aproveite a oportunidade para revisitar suas instâncias mais íntimas. Deixe papai, mamãe e professores de lado e ouça seus talentos. Se não tiver tanta certeza do que quer, quem sabe valha a pena pesquisar mais e melhor.

E você, monstro do vestibular, prepare-se. Um dia a lucidez chegará, ainda que tardiamente, e revelará a sua sombra e herança inescrupulosas. Daí só lhe restará colocar o rabinho entre as pernas e partir, deixando um rastro de perguntas não respondidas e sonhos frustrados. Antes tarde do que mais tarde.