Sobre peixes que aprenderam a nadar no ar


15 fevereiro 2007

Existe um conto a ser contado. É o conto da Pedra de Caldé. Atenção.
Há muitos anos, no alto de uma montanha que tinha em sua base um grande lago, havia um povoado chamado Caldé. Quando esta história aconteceu, o povoado estava assentado sobre um pedaço de pedra frouxa, que a cada dia deslizava um pouco rumo ao precipício. O povo que ali morava era esplêndido, e tinha um campanário, uma torre fortificada e um grupo de casas, uma depois da outra. Este povoado desapareceu no século quinze.
Certo dia, camponeses e pescadores começaram a alertar os moradores de Caldé que tudo estava deslizando, e que se eles não tomassem uma providência em pouco tempo despencariam precipício abaixo. Mas os habitantes lá do alto não queriam escutar ninguém, e ainda riram e fizeram troça daqueles que os tentavam alertar. Eles diziam que não eram bobos, e que estava claro que era um plano para assustá-los, fazendo-os abandonar o povoado. E então as suas casas e terras ficariam a mercê de quem quisesse tomá-las.
Eles continuaram a sua vida lá no alto, cultivando sua uva para o vinho, semeando seus campos, se casando e tendo seus filhos. A população aumentava continuamente, e eles sentiam a pedra se movimentando sob seus pés, mas estavam decididos a não pensar no assunto. O senso comum era que a pedra estava se assentando, e que isso era bastante normal. Entretanto, a grande placa rochosa estava prestes a se unir ao lago. Os moradores vizinhos alertavam continuamente o povo de Caldé, apontando que a água já estava batendo em suas canelas, e que não cessaria até afundar completamente tudo e todos. Eles respondiam que toda aquela celeuma era tolice. Aquilo tudo deveria ser apenas um pouco de umidade. Insistiram nesta teoria até que tudo foi parar no fundo do lago, tragado pelo movimento que se apresentara sem cerimônia há tempos.
“Gurgle… Gurgle… Gurgle…”
Valente, o padre continuou recebendo a confissão de uma senhora: “Animus… Santi… Guurgle… Aame… Gurgle”.  A torre desapareceu, o campanário afundou integralmente. Tudo, sem exceção, foi por água abaixo.
Ainda hoje, conta a lenda, que se alguém olhar para dentro do lago, e naquele momento um relâmpago iluminar tudo, será possível ver o povo de Caldé, totalmente submerso, com as suas ruas intactas e os seus mesmos habitantes caminhando por todos os lados, repetindo que nada havia acontecido. Um peixe estaria nadando daqui para lá e de lá para acolá bem em frente aos seus olhos, mas eles diriam calma e assertivamente que não havia motivo para preocupações, pois aquele peixe deveria pertencer a alguma espécie que aprendeu a nadar no ar. Não era motivo para preocupações.
Aaaaaatchim! Alguém aí sente alguma umidade no ar?
Quantos de nós sentem o chão mexer sob os nossos pés? Quantos já criaram argumentos e teorias para justificar a movimentação que poderia gerar angústia e incômodo? Tem muita gente com a água para cima das canelas. E tem também gente gritando para nos avisar. O palhaço é um ser que grita continuamente.
No ano de 1221, o imperador Frederick II da Suábia – região histórica da Alemanha – publicou uma lei que declarava que qualquer pessoa poderia cometer violência contra os bufões – uma espécie de palhaço da Idade Média -, sem estar sujeito a castigo ou sanções. A lei permitia até mesmo o assassinato impune de bufões. Qual a origem de tamanho desprezo e ódio, por parte de alguém que representava a classe dominante, pela figura do palhaço? O seu potencial transgressor. A sua teimosia em apontar as hipocrisias da vida pública e privada, e tratar delas com uma linguagem acessível e irreverente, que cativava a atenção das pessoas. Afinal de contas, o palhaço vem acreditando (e praticando) ao longo dos séculos que o seu maior desafio é estar pronto para desconstruir tudo o que foi aprendido como certo e verdadeiro, estando permeável ao novo, ao contraditório, à alteridade, à possibilidade do ajuste da caminhada.
Poucas vezes na história da humanidade o diferente se faz tão necessário quanto nos dias em que vivemos. A Organização das Nações Unidas (ONU) informou neste início de ano que 34.542 civis foram mortos em 2006 na bestial invasão ao Iraque. Outros 36 mil civis ficaram feridos. Estatísticas menos precisas indicam que pelo menos 20 mil pessoas morrem todos os dias no mundo por falta de condições mínimas de sobrevivência. Cálculos despretensiosos: somente os mortos no ano passado no Iraque representam mais de dez atentados ao World Trade Center. Aqueles que morrem todos os dias por falta de condições representam outros sete a oito atentados diários. Tudo bem em frente aos nossos olhos. São peixes que aprenderam a nadar no ar. Só que não nadam em ares estadunidenses, e talvez portanto não causem tanta comoção.
Quanto mais tenso o mundo fica, mais necessários são os palhaços.
E para quem pensa que o papel do homem ou da mulher de narizes vermelhos, rostos coloridos e sapatos grandes é superficial e limitado, e ainda, desprovido de interesse coletivo, muita atenção: por volta do ano 300 AC, o imperador chinês Shih Huang-Ti promoveu a construção da Grande Muralha da China. Milhares de trabalhadores foram assassinados ou morreram de cansaço durante a sua construção. O imperador planejava também ordenar a pintura do muro, o que certamente provocaria outras milhares de mortes. O bufão da côrte, Yu Sze, foi o único que se atreveu a criticar o plano do imperador. Valendo-se de gozações e gracejos, conseguiu dissuadir o imperador de sua idéia de pintar o muro. Yu Sze é recordado até hoje na China como um herói nacional. Hoje são tantas muralhas construídas e em construção. Todas coloridas, enceradas e polidas. Está na hora dos heróis.
Casas, ruas, bairros, cidades, estados, países e planeta carecem de narizes vermelhos. E eles brotam de uma aliança entre alma, coração e cérebro. O Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry é um pequenino palhaço. Sua receita é simples e transformadora: logo quando acordar, faça a sua toalete. Depois, saia para fazer a toalete do planeta.
Afasto de mim este cálice de vinho tinto de sangue. Coloco um nariz vermelho, a menor máscara do mundo, a que menos esconde e a que mais revela, e vou fazer a toalete do mundo. Vamos?
(Este texto é dedicado a Dario Fo, autor e palhaço, ganhador do prêmio Nobel de Literatura em 1997.)

<!– AddThis Button BEGIN –>

 

[removed]// <![CDATA[
var addthis_config = {"data_track_addressbar":true};
// ]]>[removed]
[removed][removed]
<!– AddThis Button END –>